Melià: a partida, as lutas e a terra sem males
Senhor, por favor, onde cheguei?
Aqui é a erra sem males.
Obrigado pela informação. Então posso desligar meu
GPS. Este é o lugar que buscava, para onde fui encaminhado. O lugar é seguro?
Tem certeza que nenhum invasor vai me perseguir?
Em pouco tempo Melià se sentiu em casa. No horizonte
do céu vislumbrou uma animada Aty Guasu. Não tinha mais dúvida. Estava em casa.
Sequer esperou a festa dos 86 anos que os jesuítas
havia preparado. Na véspera sentiu que era hora de partir. Bem faceiro, iniciou
a derradeira viagem.
Melià e Vicente Cañas: o reencontro
Melià foi um guerreiro de muitas trincheiras. Teve uma
experiência profunda e desafiadora. Uma delas foi com os Enauenê Nawê. Quando
do assassinato de Vicente Cañas, em abril de 1987, Melià fez um emocionado
depoimento:
“Conheci o Vicente aqui, em Cuiabá, em 1977.
Notei que se tratava de alguém fora do comum, por isso levem para casa o
retrato do Vicente, coloquem num lugar de honra, ele realmente é um santo, um
mártir, acreditem nele. Com ele aprendi muito mais do que nos livros, nas
escolas. E teimo em afirmar que de todos os missionários que temos hoje no
Brasil ele foi o que mais longe caminhou no sentido de se tornar índio com os
índios. Esse martírio é o testemunho de sua vida”.
[Depoimento de B. Melià na celebração da “Missa do Sétimo
Dia”, Cuiabá, 24 de maio 1987]
Bartomeu
Melià SJ
O Irmão Vicente está
morto. De morte matada.
Morte de Vicente coroa a
sua vida, que neste caso não tem nada de frase feita. Sua morte de martírio
apenas cela o martírio de sua vida.
Durante quatro ano, de
1978 a 1981, fui seu companheiro de missão na aldeia. Convivíamos com os
índios, e para evitar intromissões na rotina indígena, evitávamos manter
conversações separadamente nós a sós. No barraco já era diferente. Eram, às
vezes, longos dias de espera, curando-nos de uma gripe que não podíamos levar
aos índios e contagiá-los, ou simplesmente de descanso aproveitando o tempo
para ler, escrever cartas, meditar e conversar. E às vezes até comentar os
sonhos que havíamos sonhado naquela noite, sonhos muitas vezes semelhantes.
Suas palavras, seus gestos, suas atitudes são hoje para mim um entranhável
memorial.
A participação nesses
rituais, de estrutura bastante complicada e muito variadas, segundo as épocas
do ano, era o aspecto da vida indígena que mais registrara em seus cadernos de
anotações quase diárias. Participava da religião indígena, como procurei fazer
eu mesmo junto com ele, com um respeito total, sem segundas intenções, crendo e
confiando que essa religião já era o sacramento da vida de Deus nesse povo, até
que se dariam as condições de uma evangelização cristã explícita. Nesta
religião tínhamos uma experiência de fé sincera e profunda, sobretudo quando
víamos também que a vida ritual não estava separada da comunhão, na comida e na
bebida, que não excluía ninguém e que fartava a todos por igual. Nos últimos
dez anos, Vicente viveu assimilado aos Enawenê Nawê, que na realidade o tinham
como um deles.
Creio conhecer um tanto
as experiências missionárias no Brasil e em outros países da América Latina.
Pois bem, posso dizer sem exagero algum, que não conheço ninguém que foi tão
longe como o Vicente no caminho da enculturação. A vida dos Enawenê Nawê se fez
corpo nele, para o que o ajudavam suas grandes capacidades físicas e morais,
porém também uma opção espiritual realmente profética.
O
Irmão era um homem fora do comum. Homem de fronteira que tem que tomar decisões
firmes e arriscadas. Vicente nunca deixou de ser um homem livre e autêntico.
Radical, porém, não extremo.
É claro que o assassinato
do Irmão Vicente tem uma intenção bem definida: quem matou ou mandou matar o
Vicente, faria desaparecer, se pudesse, toda a tribo dos Enawenê Nawê para
apossar-se de suas terras e as madeiras nobres que nelas tem crescido durante
séculos. [...] Não faltará quem diga que era necessário que um homem morresse
para que ali entrem “civilização e progresso”.
Não é cômodo haver tido
por companheiro de vida e de vocação um mártir, e um mártir como Vicente. É uma
‘memória’ que queima por dentro e que exige muito. É uma graça de Deus.
Melià e o Cimi
Na definição das linhas
de atuação do Cimi, a entidade pôde contar com a preciosa colaboração de vários
jesuítas da América latina, dentre eles Bartomeu Melià. Além disso, ele teve
importante contribuição com a luta dos Kaingang, do Rio Grande do Sul. Também são
muito importantes as suas reflexões sobre educação indígena Ele teve contribuição
com a causa indígena em vários espaços, especialmente em universidades e
espaços acadêmicos. Sua contribuição foi fundamental na elaboração dos dois
mapas recentes Nhande Guarani e em 2016 o Guarani Continental.
Ele era um guerreiro
apaixonado pelo Povo Guarani que é o povo de maior territorialidade na América
do Sul. Olhando parra essa grande extensão de territorialidade, em certo
momento assim se expressou: “Esse povo Guarani é tão extraordinário que se não
existisse teria que ser inventado”
[Curitiba, 04.06.1987].
Egon Heck
Secretariado Nacional do Cimi
Brasília, 12 de janeiro de 2020