ATL 2017

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sexta-feira, 16 de novembro de 2012


Nos rugidos do monstro

A mineração é uma grande preocupação. Especialmente para os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, em cujo subsolo existem minerais.  Poderão ter em breve seus territórios removidos e transformados em infinitas crateras.  Em vista disso movimentos sociais e aliados das populações que historicamente continuam sendo vítimas de modelos de desenvolvimento que os impactam e destroem a natureza, promovem encontros e reflexões para traçar suas estratégias diante da voracidade da exploração mineral.

A Comissão Pastoral da Terra acaba de promover um momento de intercambio de experiências e reflexão sobre o tema "Impactos da mineração sobre comunidades camponesas, quilombolas e povos indígenas".

Durante três dias, participantes de diversas regiões do país, onde existem projetos de exploração mineral em curso, ou que já são impactados por séculos de mineração, como em Minas Gerais, Goiás. CPT e Cimi socializaram as realidades vivenciadas pelas comunidades e povos indígenas  afetados.

Foi um primeiro passo para aprofundar e entender uma realidade tão complexa, que faz parte do atual modelo de desenvolvimentismo do país, dentro da lógica do mercado globalizado.

Dentre os inúmeros desafios debatidos mereceu especial atenção a legislação obsoleta do Código de Mineração, que é de 1940 e foi atualizado pela ditadura militar para estimular os investimentos das grandes mineradoras mundiais no país. Está sendo anunciado o aumento de quatro vezes da produção mineral até 2.030.

O preocupante é que o novo Marco Regulatório da Mineração, está sendo tratado de forma fechada pelo governo, estando enclausurado na Casa Civil, prestes a ser colocado à aprovação, sem nenhum debate e participação da sociedade civil.  Ao que tudo indica, ele terá a característica de aceleração da exploração dos recursos minerais, com a modernização legal, através de uma Agência Nacional reguladora, como tem acontecido em outras áreas econômicas. Às comunidades certamente serão oferecidos fundos de migalhas da mitigação dos impactos.

Como se trata de uma estratégia arquitetada pelo governo dentro do modelo de aceleração agroextrativista para exportação, é possível entender as pressões para liberar a mineração em terras indígenas, quilombolas e remover todos os obstáculos para incorporar todas as áreas disponíveis nesse processo de exploração.

Diante desse quadro de ameaças e incertezas, os participantes do encontro, e diante dos desafios levantados, viram a importância de ampliar a discussão e reflexão nas comunidades, trocar experiências, realizar intercâmbios, sistematizar informações e articular os diversos segmentos que serão afetados pela aceleração dessa atividade extrativa.

Antonio Brand na casa da ONU

Num ritual singelo e breve, os representantes da ONU no Brasil, o ministro das Relações Exteriores e algumas dezenas de autoridades, juntamente com os representantes dos homenageados, realizaram o ato de inauguração oficial da casa da ONU no Brasil ou seja, o complexo Servio Vieira de Melo.

Depois de seis décadas no Brasil, só agora a ONU tem sua sede própria no Brasil. O primeiro prédio construído e inaugurado dia 14 de novembro, em Brasília. O nome do prédio é em homenagem a Zilda Arns.  Quase uma dezena de personalidades e lutadores dos direitos humanos e da paz, foram agraciados com nomes de salas. Uma delas é Antonio Brand. Sua filha Luciana esteve na cerimônia que o homenageou. Também estiveram presentes o secretário do Cimi e amigos de Antonio.

A relação dos homenageados representa um panteão de brasileiros ilustres e lutadores deste país, declarou o ministro de Relações Exteriores. Dentre eles estão João Candido, Vinícius de Moraes, Zumbi dos Palmares, Chico Mendes, Maria da Penha, Antonio Brand, dentre outros.

Antonio Brand se destacou como aguerrido batalhador da causa dos povos indígenas no Brasil, atuado por 13 anos no Cimi, sendo secretário da entidade por oito, no período da Constituinte. Iniciou sua inserção na causa indígena através da OPAN - Operação Amazônia Nativa, da qual foi coordenar. Enquanto fazia o mestrado e doutorado sobre o povo Kaiowá Guarani desenvolveu trabalhos em benefício de comunidades deste povo, estando ligado à Universidade Católica Dom Bosco de Campo Grande, MS.

Cimi em clima de Congresso

O verde e colorido de flores, frutos e sonhos, tomou conta do Centro de Formação Vicente Cañas. O vai e vem só é interrompido com pancadas de chuva passageira e faceira. Os bambus vão dando suporte a tendas, as faixas são esteticamente distribuídas pelos espaços generosos povoados de vegetação do cerrado e muitos pés de mangas madurando.

Nesse clima de animação contagiante vão chegando os primeiros participantes. Na verdade são os voluntários da harmonia do ambiente com o espírito da festa, reflexão e luta.

Do dia 20 a 23 mais de duas centenas de missionários, lideranças indígenas e aliados da causa do Brasil e do continente estarão realizando um grande momento de celebração dos 40 anos da entidade e refletindo sobre o momento atual e as perspectivas da construção de um outro mundo possível, do Bem Viver para todos.

Egon Heck - Cimi 40 anos, Brasília 16 de novembro de 2012.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

P ovos Indígenas do Maranhão, em Brasília


Viemos para guerra,
queremos nossa terra,
demarcada, respeitada,
livre de invasões,
sem madeireiras ou fazendeiros,sem mineradoras ou garimpeiros!
livres dos males civilizados,
queremos justiça e paz.

Da aldeia aos três poderes

Aos poucos foram  chegando, das diversas regiões do Estado do Maranhão, para uma longa viagem de quase mil e quinhentos quilômetros. Corpos pintados, cocares, bordunas pesados, flechas certeiras. O destino é chegar aos que decidem, aos detentores do poder, para lhes dizer: queimem a portaria 303, revoguem aos leis que ferem nossos direitos, respeitem os povos indígenas do Maranhão e de todo país.

Em frente ao Congresso as fotos e filmagens diante de casas tão estranhas. Forte sensação de quem só conhecia essa paisagem por alguma foto ou notícia de radio.

Portas fechadas, corações indignados

 As portas fechadas do Ministério da Justiça ou o temor dos seguranças do palácio do Planalto não os intimidaram. Os rituais, cantos e danças não pararam. Foram horas tentando dizer à presidente Dilma -nós existimos, estamos aqui. Queremos ser ouvidos e respeitados. Demarque nossas terras. Chega de invasão e destruição!

No auditório da Funai, tiveram encontro com a presidente do órgão, Marta Azevedo e sua equipe. Puderam rapidamente expor os graves problemas que muitas comunidades enfrentam, especialmente aos invasões de fazendeiros , madeiros, garimpeiros e grandes projetos do governo. Diante disso exigiram ações mais eficazes da Funai e mais agilidade e datas para os processos de regularização de seus territórios. Apesar da descrença pela histórica omissão do governo, puderam expressão sua indignação e expor suas exigências.

Em seu manifesto, expressam  as razões de presença em Brasília . “Nós, povos indígenas do Estado do Maranhão Guajajara, Gavião, Krikati, Rankokamekra, Mermortumre, Apaniekra, Kaapor, Awá-Guajá, Krepymkateyê e Krenyê, vimos respeitosamente exigir de Vossa Excelência, a Revogação imediata da Portaria 303, por entendermos que a mesma vem usurpar os nossos direitos, e não admitimos apenas a  suspensão temporária deste equivocado e inconstitucional ato jurídico-administrativo que restringe de forma absurda os direitos originários e fundamentais dos nossos povos.

Os povos indígenas do Maranhão reafirmam o posicionamento já publicado pelas organizações e delegações indígenas das outras regiões que desde final de julho, após a edição dessa Portaria, manifestam-se veementemente por sua revogação integral e imediata.

Reforçamos aqui a nossa insatisfação com a conjuntura política atual que demonstra claramente os acordos do governo com os grupos econômicos desse país, cujos interesses são a exploração das riquezas naturais, construção de hidrelétricas, refinarias, plantios de monocultivos, ferrovias, hidrovias e rodovias, que facilitam a exportação e mercantilização dos territórios indígenas.

Portanto, nós povos indígenas do Maranhão, juntamente com os demais povos do Brasil, só cessaremos a luta quando os nossos direitos forem respeitados e a Portaria definitivamente revogada. " Brasília, 05 de Novembro de 2012.

  Lutar juntos

 Uma Assembleia Indígena dos Povos do Maranhão. É essa a impressão que tive ao se apresentarem e externarem seu sentimento “Precisamos lutar juntos”, nos unir. “Será que vamos ficar embaixo de uma moita que nem jaboti”, perguntava outro. Precisamos usar nossa sabedoria para impedir que os brancos façam leis contra nós. E deixaram claro por  que vieram de tantos e tão longínquos lugares: “estamos aqui para queimar essa lei, os decretos e portarias".  Parecia uma atualização dos momentos de luta contra o projeto de “emancipação” em 1978. Naquela ocasião os povos indígenas fizeram uma Assembléia e exigiram que o ministro general Rangel Reis, queimasse definitivamente esse projeto. E conseguiram. Nunca mais voltaram a falar nisso. É o que se espera agora com a portaria 303 da AGU. A respeito dessa portaria uma liderança assim se manifestou “essa lei pra nois é o fim do mundo. Respeitem nossos direitos”.

Povo Guarani Grande Povo

Cimi 40 anos, Brasília 8 de novembro de 2012 

domingo, 4 de novembro de 2012

Vergonha Nacional


"Concedo o efeito suspensivo ao agravo de instrumento, para determinar a mantença dos silvícolas da comunidade de Pyelito Kuê exclusivamente no espaço de 1 (um) hectare, ou seja, 10 mil metros quadrados, até o término dos trabalhos que compreendem a delimitação e demarcação das terras na região..."(Decisão da 3ª Região da Justiça Federal, São Paulo 30 de outubro de 2012)

Portanto fica decretado a  manutenção de uma família da Fazenda Cambará em 761 hectares, enquanto duas comunidades indígenas,com mais de 200 pessoas, são confinadas em 1 (um) hectare.

Um minuto de silêncio. Senadores, deputados, lideranças Kaiowá Guarani, repórteres, representantes de órgãos do governo e do Ministério Público, aliados da causa, em pé, homenageiam a memória dos professores Genivaldo e Rolindo, que há exatos três anos foram cruelmente assassinados quando retornaram  à sua terra, tekoha Ypo'i, município de Paranhos, no Mato Grosso do Sul. Até hoje o corpo de Rolindo não foi localizado e nenhum dos assassinos punidos. Aplausos. Os lutadores  indígenas tem sua memória reverenciada, apesar de sua luta pela terra continuar emperrada, na malvadeza e burocracias do poder.

Na parede fria de um dos auditórios do Senado, onde  se realizava uma audiência pública sobre a questão Kaiowá Guarani, estavam projetadas as imagens do corpo do professor Genivaldo Vera, boiando nas águas do rio ypo'i, o "sorriso matado", do cacique Nisio Gomes, a líder Damiana junto a seus barracos queimados, à beira da estrada, lembrando seu marido e três filhos mortos por atropelamento, ...outro membro da comunidade de Apika'y espancado por ocasião da expulsão de sua terra...Um quadro tétrico, retrato da "barbárie civilizada"! ou genocídio do século XXI como muitos tem visto a violência contra os Guarani Kaiowa.

Como podemos ficar felizes?

No décimo andar de um belo edifício em Brasília, um anúncio eufórico de uma "vitória". Os índios de Pyelito Kuê não serão despejados. A liminar acaba de ser caçada na 3ª Vara da Justiça Federal , em São Paulo.  O ministro da Justiça José Eduardo Martins Cardoso leu pausadamente a decisão. "por tudo quanto foi exposto, a melhor solução é circunscrever a permanência dos índios num espaço de 1 (um) hectare, ou seja, 10 mil metros quadrados, até o término do procedimento administrativo de delimitação e demarcação  das terras na região" e a sabia e douta decisão continua "os índios  devem ficar exatamente onde estão agrupados, com a ressalva de que não podem estender o espaço a eles reservado em nenhuma hipótese".  O cantador popular concluiria "é a parte que lhes cabe neste latifúndio!!!". Dia 30 outubro de 2012. Século 21. A justiça decide reeditar os "confinamentos" ou "campos de concentração", conforme manifestação de lideranças indígenas, parlamentares e representantes dos movimentos sociais. A deputada Érica Kokai afirmou que "Confinamento é genocídio" e que é esse o processo em curso no Mato Grosso do Sul. A deputada Janete Capibaribe afirmou que a realidade dos Kaiowá Guarani envergonha a sociedade e nação brasileira. Nesse mesmo tom o Deputado Pe. Tom, presidente da Frente Parlamentar Indígena,   afirma que o que acontece com os Kaiowá Guarani se assemelha ao que se passou com os judeus no tempo do nazismo.

As lideranças Guarani, dentre os quais o cacique Lide Lopes de Pyelito Kuê,  Otoniel Ricarte, Eliseu Lopes, dentre outros, manifestaram em diversas oportunidades, nesta semana, sua contrariedade com a decisão judicial. "Ficamos meio felizes, porque a comunidade não vai ser expulsa, mas ficamos por inteiro envergonhados, porque nos fecharam dentro de um hectare". Lindomar Terena disse considerar um absurdo deixar os índios dentre de um "chiqueirinho".

Até o linguajar "mantença e silvícolas", nos remete a séculos passados. Não serão necessários grandes esforços para imaginar o drama de sobrevivência dessa comunidade, até que o governo conclua o trabalho de identificação e demarcação das terras na região. Quantos anos de tortura e sofrimento estarão contidos nessa decisão? Quantos meses, anos ou décadas ainda se arrastarão os infindáveis processos de regularização das terras indígenas na região?

Semana Kaiowá Guarani em Brasília

Lideranças expressivas do povo Kaiowá Guarani e Terena do Mato Grosso do Sul, tiveram uma intensa agenda de debates, visitas a autoridades dos três poderes, conversas com Ministros e parlamentares, manifestações públicas e contatos  com a imprensa nacional e internacional.

No Ministério Público Federal, ouviram das Procuradoras Débora Duprat e Raquel Dodge a promessa de atitudes enérgicas de cobrança, inclusive judicial, das responsabilidades do governo federal com relação ao não cumprimento do Termo de Ajustamento de Conduta-TAC, no qual todos os relatórios de identificação das terras Kaiowá Guarani deveria ter sido publicados até 30 de junho de 2009.

Do  ministro da Justiça ouviram os encaminhamentos do governo, para evitar a expulsão da comunidade de Pyelito Kue, aumento da força nacional e polícia federal na região e de que dentro de 30 dias estaria sendo publicado o relatório circunstanciado dessa terra indígena, pela Funai. Disse ainda que "a presidente Dilma quer que se cumpra a Constituição".

O Conselheiro do CDDPH, Eugenio Aragão, que coordena o grupo especial Kaiowá Guarani criada no âmbito desse  órgão, lamentou que o governo só age e se movimenta quando acontecem catástrofes, quando se está à beira do abismo. Cobrou energicamente uma revisão dos métodos de atuação com relação à demarcação e garanti das terras indígenas e ação urgente para pagar a dívida histórica para com esse povo.  Salientou a importância da participação do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, que criou uma comissão especial com propósito de agilizar a  demarcação das terras Kaiowá Guarani.

O Procurador Marco Antonio Delfino, do Ministério Público de Dourados, acompanhou a intensa maratona de atividades, dentre as quais a conversa com vários ministros do Supremo Tribunal Federal. Insistiu na inadiável ação do governo no sentido de começar a encontrar caminhos para resolver a gravíssima situação das terras indígenas no Mato Grosso do Sul. Externou os dados que revelam essa situação insustentável, dentre os quais o fato de que os últimos dez anos os Kaiowá Guarani conseguiram efetivamente apenas dois mil hectares, e de que as terras ocupadas por esse povo representam apenas 0,1% do território do Estado.

O secretário do Cimi, Cleber Buzatto, em vários momentos chamou atenção para a morosidade e omissão do governo, enquanto nos três poderes avançam iniciativas que visam tirar direitos constitucionais dos povos indígenas e agravar ainda mais a situação de violência. Falou da importância das iniciativas de ampla divulgação, especialmente nas redes sociais, da realidade indígena, para que desse processo de comoção nacional emergem ações e pressão pelo respeito aos direitos dos povos indígenas e a imediata regularização das terras indígenas.

Tiveram reuniões de definição de ações estratégicas na Articulação dos Povos Indígenas do Brasil-APIB, na Funai e outros órgãos e entidades. Levam em suas bagagens de retorno às aldeias a certeza de que a luta por seus direitos avançou, mas que devem se intensificar as alianças e solidariedade em nível mundial e as lutas de retorno às suas terras tradicionais, como afirmou Eliseu Lopes "Estamos cansados de bonitos discursos e promessas. Vamos continuar nossas ações de retomar nossas terras".

Egon Heck e Laila Menezes

Povo Guarani Grande Povo , Cimi 40 anos, 2 de novembro de 2012

“As reservas são confinamentos de índios”, acusa Egon Heck



Um dos fundadores do CIMI, Egon Heck trabalha há mais de 40 anos junto a comunidades indígenas | Foto: Valter Campanato/ABr
Samir Oliveira
O indigenista e cientista político Egon Heck trabalha há mais de 40 anos ao lado de comunidades indígenas em todo o país. Militante do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Egon é ex-padre e um dos fundadores dessa entidade. Formado em Teologia e em Filosofia, com pós-graduação em Ciência Política, ele sempre acompanhou de perto a situação dos índios Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul.
Atualmente, a luta dessa tribo pelo retorno ao seu território original ganhou repercussão após um manifesto em que, diante do frequente descaso em relação às suas reivindicações, pediam que fosse decretada sua “extinção coletiva” pelo governo federal e pela Justiça. Nesta entrevista ao Sul21, Egon Heck faz um resgate histórico da situação dos Guarani-Kaiwoá na região e conta como são as condições de vida desse povo.
“Na área de Dourados, existe em torno de 15 mil indígenas confinados em 3,5 mil hectares. Foram levados para lá de 40 regiões diferentes. É uma área totalmente sem mata, sem condições propícias para a reprodução física e cultural dos Guarani-Kaiowá. É impossível, nessas condições, perpetuar a economia e a visão cosmológica de mundo deles”, comenta.
Para o especialista, as reservas indígenas se configuram, na prática, como prisões – pois não representam territórios sagrados para os índios e misturam diferentes tribos num espaço muitas vezes pequeno. “Os índios se locomoviam por toda uma região e acabaram confinados em pequenas áreas. As reservas são, na verdade, confinamentos de índios. São depósitos onde eles são colocados para serem disponibilizados como mão-de-obra agrícola”, acusa.
“Mais de 90% das famílias Guarani-Kaiowá depende diretamente da cesta básica. Isso gera um problema psicológico e cria uma cultura de dependência”
Para indigenista, Guarani-Kaiowá do MS vivem uma das piores situações de povos indígenas em todo o mundo | Foto: campanhaguarani.org
Sul21 – Como vivem os Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul?
Egon Heck – A realidade vivida pelos Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul é de uma gravidade que eu nunca havia visto nos 40 anos em que trabalho com povos indígenas. A violência que eles sofrem é decorrente da falta de terra, que é decorrente de um processo histórico e atual de preconceito e discriminação. Essa conjunção de fatores faz com que eles se encontrem hoje numa das piores situações no Brasil e no mundo. Os números são alarmantes, seja em termos de mortes por conflitos violentos na luta da terra, seja por mortes decorrentes da falta de condições de vida. Isso faz com que praticamente não seja mais possível se reproduzir o tecido social dos Guarani-Kaiowá. Nessas condições, a cultura deles não tem como enfrentar as diversas situações de confronto, que são agravadas pela fome, pelo alcoolismo e por outros elementos que vão se introjetando nas comunidades indígenas. Temos um quadro de extrema gravidade e o que mais preocupa é que não há decisões políticas para que se enfrente positivamente essa situação. É preciso remover esses obstáculos: a falta de terra e a falta de condições de sobrevivência.
Sul21 – Sem terras e condições de vida adequadas, como eles se sustentam?
Egon - Hoje, mais de 90% das famílias Guarani-Kaiowá depende diretamente da cesta básica. Isso gera um problema psicológico muito forte e cria uma cultura de dependência e desestímulo ao próprio trabalho de produção dos alimentos. Eles praticamente não conseguem encontrar trabalho. Os empregos fora da aldeia eram nos fundos de fazendas e deixaram de existir com a mecanização da agricultura. Hoje, cerca de 10 mil índios trabalham nas usinas de cana de açúcar. Podemos imaginar que a situação tende a se agravar, ao invés de melhorar. Isso só reforça um processo de genocídio.
“A revolta no espírito e no coração dos Guarani-Kaiowá é tanta que eles preferem a morte a esse tipo de dor e sofrimento. Eles não temem a morte” | Foto: campanhaguarani.org
Sul21 – Como se originou o processo de expulsão desses índios das suas terras?
Egon - Os índios já participaram na Guerra do Paraguai, no século XIX, e tiveram vários mortos. Mas eles conseguiram se manter na floresta, porque aquela região foi mantida com a atividade econômica do plantio de erva mate, que não afetava profundamente o meio-ambiente. Os Guarani-Kaiowá conseguiram se manter nas florestas, complementando sua sobrevivência com o trabalho na colheita de erva mate. De 1915 a 1928, o Serviço de Proteção ao Índio (SIP) demarcou oito pequenas áreas indígenas, sendo quatro delas com uma dimensão de 3,5 mil hectares e as outras com 2,4 mil hectares. Com isso, foi acontecendo um processo de implantação lenta da pecuária e de derrubada da mata para plantações de capim. Os índios foram, inclusive, utilizados nesse trabalho de desmatamento. Mas, ainda nesse período, continuavam vivendo nos fundos das fazendas, no pequeno pedaço de mato que sobrava. Durante todo o século passado até 1943, puderam viver relativamente bem. Com o plano do governo de Getúlio Vargas de ocupação da fronteira Oeste através da colonização e da implantação massiva da agricultura, estabeleceu-se a colônia agrícola de Dourados, com mil famílias em mil lotes de 30 hectares. Isso afetou profundamente os índios, que tinham locomoção por toda a região e acabaram confinados em pequenas áreas. As reservas são, na verdade, confinamentos de índios. São depósitos onde eles são colocados para serem disponibilizados como mão-de-obra agrícola.
Sul21 – A partir de que momento os índios começaram a despertar para a reivindicação dos seus territórios originais?
Egon - A partir do inicio dos anos 1980, os índios iniciam um processo de retomada de suas terras tradicionais. A primeira delas foi o Rancho Jacaré, na antiga Fazenda Campanário, que era uma fazenda sede na produção da erva mate na região. Os índios desse território haviam sido colocados num caminhão pela FUNAI e levados ao Paraguai. Depois eles retornaram para lá e foram novamente levados para longe. Eles então caminharam mais de 100 quilômetros e voltaram ao seu espaço tradicional. Foi nesse momento que começaram a ter apoio do CIMI e de outras entidades da sociedade civil. A partir daí, até o início dos anos 1990, houve mais de 10 marchas indígenas de retorno aos seus territórios. Essas terras são inerentes à cultura dos Guarani-Kaiwoá, lá estão os seus antepassados. Além disso, eles têm o direito constitucional de viver lá. Só que, ao retornarem às suas terras, os índios são recebidos por jagunços e pistoleiros fortemente armados, que os colocam para fora. Por isso eles ficam acampados nas beiras das estradas. Existe mais de 30 acampamentos no Mato Grosso do Sul.
“Ao exigirem direito de constituir grupos familiares menores em seus espaços tradicionais, os Guarani-Kaiowá enfrentam uma situação desesperadora de violência e discriminação”
Sul21 – Como são as condições de vida dos índios nas reservas do Mato Grosso do Sul?
Egon - Na área de Dourados existe em torno de 15 mil indígenas confinados em 3,5 mil hectares. Foram levados para lá de 40 regiões diferentes. É uma área totalmente sem mata, sem condições propícias para a reprodução física e cultural dos Guarani-Kaiowá. É impossível, nessas condições, perpetuar a economia e a visão cosmológica de mundo deles. Imagine o tensionamento que isso não produz. Quando, tradicionalmente, havia tensões entre um mesmo grupo indígena, os responsáveis pelo conflito migravam para outro lugar. Agora isso é impossível. Os 40 grupos dessa reserva não têm para onde sair. Há uma situação absolutamente insustentável, os índios têm medo de sair de casa à noite. E isso se repete em outras reservas. A única alternativa que eles encontram é o retorno à constituição de grupos familiares menores em seus espaços tradicionais. Isso é, por direito, o que os Guarani-Kaiwoá desejam. Mas, ao exigirem esse direito, enfrentam uma situação desesperadora de violência e de discriminação.
Agronegócio e forças do Estado agem como negadores dos direitos indígenas, argumenta Egon Heck | Foto: Antonio Cruz/ABr
Sul21 – Os fazendeiros contratam pistoleiros para expulsar os índios de suas terras. E o Estado disponibiliza contingentes armados para executar ordens de despejo. É possível dizer que os índios enfrentam dois inimigos: os grandes proprietários de terra e o próprio Estado?
Egon - Na verdade, de formas diferentes, os condutores do agronegócio e o Estado são negadores dos direitos dos índios. Os fazendeiros não reconhecem o direito dos índios e agem com a violência que é inerente a um processo que sequer espera pela Justiça. Um dia depois do retorno dos índios ao território, os pistoleiros já estão no local. O segundo fator é a Justiça local, que, em geral, tem se posicionado rapidamente em favor dos fazendeiros, com ordens de reintegração de posse. Esse posicionamento contrário e imediato por parte da Justiça ao direito dos índios simula o que o Estado acaba efetuando em seguida, que é a disponibilização de suas forças de repressão para a remoção das comunidades. São procedimentos distintos, mas têm as mesmas consequências.
Sul21 – Como o senhor avalia esse manifesto dos Guarani-Kaiowá, no qual afirmam que preferem morrer a sair de suas terras?
Egon - É difícil termos ideia do tamanho do desespero que eles vivem para que tenham chegado ao ponto de fazer essa declaração. Eu tenho acompanhado de perto esse grupo por vários anos. São 16 anos de reiteradas violências e negações. Eles são espancados, sofrem, têm familiares desaparecidos, passam fome, mas continuam lá no seu canto. Chega um momento em que eles perdem a esperança. Todo sofrimento já impingido durante essa década os leva a uma descrença total em uma possibilidade de continuarem vivendo com um mínimo de liberdade e dignidade em sua terra tradicional. A revolta no espírito e no coração é tanta que eles preferem a morte a esse tipo de dor e sofrimento. Eles não temem a morte. A morte passa a ser um subterfúgio para superar o sentimento maior que eles sentem nessa situação.
“Somos participantes e, de certa forma, responsáveis por um sistema que nega a vida a esses povos. Precisamos mostrar ao mundo que não somos coniventes com o genocídio indígena”
Sul21 – Que tipo de reação positiva pode surgir na sociedade a partir desse desabafo dos Guarani-Kaiowá?
Egon - Precisamos dosar a consequência dessa conclamação, que nos leva a uma possível situação de genocídio. Se isso acontecer, seremos cobrados pela História. Somos participantes e, de certa forma, responsáveis por um sistema que nega a vida a esses povos. Precisamos mostrar ao mundo, de uma vez por todas, que não somos mais coniventes com o genocídio indígena. Essa carta precisa mobilizar a consciência nacional para que se exija atitudes positivas dos poderes responsáveis.
“A prática do governo federal é contrária aos direitos constitucionais e aos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. Essa carta dos Guarani-Kaiowá traz à tona uma realidade gravíssima” | Foto: Wilson Dias/ABr
Sul21 – Há, por parte do governo federal e boa parte da sociedade, a visão de que os índios representam um entrave ao desenvolvimento do país.
Egon - Os índios não têm nenhuma pretensão de inviabilizar nada. Querem apenas continuar vivendo com seus valores tradicionais e seu sistema de vida. Infelizmente, esse pensamento persiste nas opções políticas do governo federal, que prioriza, em todos os aspectos, um sistema de favorecimento do capital em detrimento dos direitos e da vida de populações indígenas. As obras do PAC afetam mais de 500 áreas indígenas. Infelizmente, a prática do governo federal continua sendo contrária aos direitos constitucionais e aos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. Essa carta dos Guarani-Kaiowá traz à tona uma realidade gravíssima. Continuamos com estruturas de Estado e opções políticas que não dão espaço a convivência com esses diferentes povos indígenas. É preciso haver mudanças profundas na relação do estado brasileiro com as minorias.
Sul21 – Qual o papel da FUNAI no atendimento das demandas indígenas?
Egon - Faz cinco anos, em novembro de 2007, que foi assinado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público Federal para que a FUNAI dê a titulação de 36 terras indígenas. Em junho de 2009 deveriam estar entregues os trabalhos de identificação das terras originais dos Guarani-Kaiowá. Passaram-se cinco anos e infelizmente nenhum relatório foi publicado. A maioria sequer foi concluída. É uma demonstração absoluta da ineficácia – quando não da omissão – do governo em relação a esse problema. A FUNAI acaba, em ultima instância, sendo obrigada a adotar uma política de acomodação de interesses que faz com que ela, sucateada, tenha apenas o mínimo de possibilidade de dar alguma resposta a esses problemas. A FUNAI não consegue fazer as coisas avançarem e, em alguns casos, até promove retrocessos. Infelizmente, a FUNAI, assim como foi o SPI, acaba sendo um mecanismo de acomodação em função dos interesses prioritários para o governo.