ATL 2017

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sábado, 28 de junho de 2014

Por detrás da bola

 
 Vem correndo um moleque feliz. Descontraído, sente-se livre. Enquanto  os demais estão amarrados a uma TV ou estádio, ele, com outros seus iguais, conquistou um pedaço da rua deserta. Estrada que vira campo  de futebol não é novidade. Causa espanto quando isso acontece em pleno dia da semana, em rua movimentada. Só sucede num país eletrizado pela Copa do Mundo. A criançada da periferia agradece.
Do outro lado da rua, a cachorrada  anda em fila indiana, atrás do prazer, sem saber como esconder o profundo mal estar que lhe proporcionava aquele barulho infernal, dos rojões.  Chegaram a expressar a intenção de se esconder em algum  local a prova de barulho. Mas aonde se esconder, se os estouros eram tantos que não lhes deixavam nenhuma alternativa.  O jeito era suportar a dor nos tímpanos buscando se divertir ou protestar, com umas orquestradas latidas e uivadas.
Enquanto isso, em várias regiões do país, silenciosamente, cidadãos desse país, se preparam para mais uma jornada da “Caminhada Troca de Saberes”. Atividade de interação, troca de saberes e solidariedade. Momentos ímpares de encontro consigo mesmo, com as populações, com a natureza. Cada passo é uma partilha. Cada abraço é a valorização e respeito ao diferente. O caminho vai sendo feito em harmonia com a mãe terra e a natureza acolhedora, com sua beleza e a sabedoria profunda de seus habitantes primeiros. Salve os Javaé, Karaajá e Avá Canoeiro, sobreviventes. Salve a Ilha do Bananal em sua rica sócio e biodiversidade, que será o berço de nossos sonhos e ações nas próximas semanas.

Ilha do Bananal – Malvado Tory (branco) – turismo, prostituição e cachaça

Consta nos livros de geografia de que se trata da maior ilha de águas fluviais do mundo. Carregamos o estigma de “maiores do mundo” em alguns aspectos. Portanto nada de mais se a ilha do Bananal nos brinda também com esse título.

O velho cacique Arutana desabafa “ todas as doenças foram trazidas por ‘tory’. O que estragou a gente foi doença e bebida” Em depoimento registrado pela jornalista Memélia Moreira  publicada em FSP, 25/04/1977 com as manchetes “Carajás um povo ameaçado de extinção” e “Turismo pode acabar com índios que moram na Ilha do Bananal”. Era o momento em que se estava começando a implantação um grande projeto de turismo que tinha como ícone e famoso Hotel John Kennedy. O Hotel na ilha, com suíte presidencial fora construído por Juscelino Kubistchek, num dos mais belos lugares do país. Serviria para refúgio e turismo dos altos escalões dos governos. Acabou na decadência total e só voltou ao cenário econômico quando  a Superintendência de Desenvolvimento do Centro Oeste-Sudeco, entregou à Goiastur o lendário hotel, nas margens do Rio Araguaia. Era dia do índio de 1977. Mais um golpe para a população indígena da ilha.

Transaraguaia –“estrada assassina”

Assim D. Pedro Casaldáliga classificou esse empreendimento do governo militar (Folha de São Paulo 19-10-1983). Em seu depoimento na Comissão do Índio da Câmara, disse que a estrada é “absolutamente inviável, pois atinge áreas que são leito do rio Araguaia e sua construção exigirá a realização de obras de aterro num percurso igual a 80 km.”...e prosseguiu “se  o governo quisesse de fato beneficiar a população da região bastaria que com apenas 20 por cento dos recursos previstos para a construção da Transaraguaia, realizasse obras de correção e pavimentação da estrada do  Calcário, que serve hoje à população do Araguaia”
A construção dessas estrada cortando ao meio a ilha do Bananal foi duramente criticada por instituições, organismos e pessoas ligadas ao meio ambiente, populações indígenas e indigenistas e direitos humanos .’Não é preciso ser nenhum profeta para adivinhar que essa estrada irá acabar com a flora e fauna da região...Os índios da Ilha do Bananal já demonstraram que não aceitam, sem luta, o extermínio ecológico do lugar que abitam” (Brasigois Felício – O Popular 28-08-1983) O autor qualifica a construção dessa estrada como  “crime de lesa humanidade e de “ecocídio sistemático”.
A pressão para abrir estradas na ilha  continuam. No ano passado  foi relizado um rally atravessando a  ilha do Bananal para entregar um documento ao governador pedindo a construção de uma estrada asfaltada cortando a ilha do Bananal.
Nos próximos 20 dias estaremos caminhando nesse chão de forma respeitosa e solidários na defesa da natureza e dos povos indígenas.
Caminhantes, pé na estrada, com muita dignidade, pois o chão que vamos pisar é sagrado, é a mãe terra dos povos Javaé, Krajá e Avá Canoeiro.

Para entender melhor

Caminhada troca de saberes
É um momento, no início ou metade do ano, em  algumas dezenas de pessoas se encontram parar caminhar em determina espaço do território nacional ou latino americano, para sentir, conviver e trocar saberes com as comunidades que ali vivem.
São vinte dias de intensa interação e conhecimento da sociobiodiversidade. Embalados pelo lema: verdade, simplicidade e amor, cada caminhante sente-se comprometido com a vida existente na mãe terra.Para maiores informações assista o vídeo em que Antonio Alencar, um dos idealizadores e esteio dessa iniciativa, fala um pouco do histórico e objetivos da caminhada troca de saberes.

http://www.youtube.com/watch?v=2-JmYrWcQQs

O Parque Nacional do Araguaia – criado em 1950 com 562 mil hectares.
A construção da estrada seria para atender um polo de produção de álcool e açúcar na região leste do MT e beneficiar 150 empresas agropecuárias.

População originária-indígena

Foram caçados como mão de obra pelos bandeirantes no século XVIII
O avanço da frente agropecuária se intensificou a partir da “Marcha  para o Oeste, na década de 50. Com a expansão  da pecuária, o meio ambiente e as terras indígenas e seus habitantes foram drástica e violentamente atingidos. Destruição da natureza e proliferação de doenças e epidemias.
Simultaneamente foi estimulado o turismo na região da ilha.

Egon Heck 
Luziania GO 28/06/14



segunda-feira, 9 de junho de 2014

Matando com e contra a lei


Seguidamente  vemos os povos dos indígenas expressões como “estão nos matando com a lei, a canetaços,  leis que eles mesmos fizeram, dizendo que é para nos defender. Basta citar todas as Constituições desde 1938 até a de 1988. Em todas elas está garantido o direito a nossas terras, à proteção dos nossos territórios. É obvio que nesse quesito a Lei Maior do país foi olimpicamente desrespeitada. Os territórios indígenas foram invadidos, os recursos naturais saqueados. E o que é mais grave, continua o mesmo processo.  
Vale lembrar o Código Civil, de 1916,  tão cioso em defender os índios, que os enquadrou na categoria dos menores de idade, dos relativamente  incapazes. Será que já paramos para olhar as barbaridades feitas contra os índios por seus tutores, em nome da tutela? Basta dar uma foleada nas mais de 7 mil páginas do Relatório Figueiredo, fruto de uma rápida investigação, em 1967, sobre a atuação do Serviço de Proteção aos Índios - SPI  Poder-se-ia dizer que tudo que é crime e perversidade foi encontrado, sendo em maior parte  as ações e crueldades feitas por agentes do Estado, pelos tutores, ou no mínimo, com a conivência e omissão dos mesmos. E se tivermos mais um pouco de tempo, que tal folear as milhares de páginas de violências contra os povos indígenas expostas nas Comissões Parlamentar de Inquérito-CPIs de 1953 (senado), 1963 e em consequência dessa outra em 1968 e depois em 1977.  Assim teríamos um enorme mosaico de violências, violações dos direitos indígenas, caracterizando um processo de etnocídio e genocídio.
Até mesmo a lei 6.001 – Estatuto do Índio, de dezembro de 1973,  vigente até hoje,  tem sido largamente usada pelos inimigos dos índios e pelo Estado brasileiro, para promover a integração-assimilação dos povos indígenas, e utilizar os territórios conforme suas conveniências, pois no artigo 20 estabelece que a União pode dispor das terras indígenas sempre que entender que seja para a “segurança nacional”, ou para realização de obras, ações, de interesse ao desenvolvimento do país.
Se tudo isso não bastasse para ao menos sacudir um pouco a nossa consciência adormecida e mal informada com relação aos povos indígenas e seus direitos, vemos que, infelizmente o processo de matar os índios com a lei, apesar da lei ou contra a lei continua. Lembremos o que afirmou Orlando Vilas Boas, na década de 70 “Em cada século o Brasil matou um milhão de índios”. Provavelmente o número seja ainda maior. Apesar de tudo isso continuamos impassíveis, sendo alimentados com bombardeios de informações sobre a Copa do Mundo. Para a maioria dos povos indígenas é apenas mais um tempo de sofrimento, de violências, desrespeito, racismo e assassinatos. Mas avisam “estamos em campo, nem que seja nas batalhas, enfrentando bombas e balas de borracha. “O gol que interessa a nós povos indígenas é a demarcação de nossas terras” afirmou Sonia Guajajara, após encontro com os presidentes da Câmara e do Senado.
A luta ruralista contra a lei
Não satisfeitos  com todas as investidas para tirar os direitos indígenas da Constituição, na semana passada eles abriram um novo flanco para sua artilharia pesada.  O novo alvo foi a “iníqua”(segundo eles) Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho-OIT, da qual o Brasil é signatário desde 2004.
O debate sobre a revogação da Convenção 169 é uma investida dos ruralistas, que estão utilizando a Comissão especial da PEC 215 para fazer palanque contra os direitos dos povos indígenas e populações tradicionais. O propositor da investida é o deputado José Cezar Quartiero, conhecido pela truculência contra os povos indígenas em Roraima, respondendo a vários processos.  Segundo Fernando Prioste, advogado popular e o coordenador da Terra de Direitos, “a iniciativa ruralista é um claro ataque a indígenas, quilombolas e povos tradicionais que lutam pela efetivação de direitos.”
O mais grave descumprimento de leis foram sem dúvida a da não demarcação das terras/territórios indígenas. É como se o Estatuto do Índio não tivesse ordenado ao Estado brasileiro a demarcação de todas as terras indígenas até dezembro de 1978. E o mais grave, a Constituição de 1988 estabeleceu outros 5 anos para a demarcação de todas as terras indígenas. Até hoje vemos a recusa do Estado brasileiro em cumprir essa sua obrigação, e o legislativo, por pressão dos ruralistas e do agronegócio, tentando inviabilizar a demarcação das terras indígenas. Quem está pagando com seu sangue e sofrimento esse descumprimento das leis são os povos originários desta terra. Enquanto isso se continua matando com a lei, procurando também desconstruir e matar direitos conquistados na Constituição e legislações internacionais.
Enquanto isso a bola vai rolar tentando fazer o gol da terra mãe!

Egon Heck
Cimi, secretariado nacional

CFVC-Luziânia, 8 de junho de 2015