ATL 2017

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sexta-feira, 7 de dezembro de 2012


Kaiowá Guarani – não agüentamos mais

“Diga ao povo que avance. Avançaremos nas retomadas”. Com essa determinação os Kaiowá Guarani  no Congresso Nacional em Brasília, deixaram claro sua decisão de não mais ficar eternamente por decisões e ações que nunca vem.

O ano de 2012 foi um ano de intensa mobilização dos povos indígenas no Mato Grosso do Sul. A causa desses povos conseguiu uma visibilidade e alianças talvez jamais vistas na história indígena deste país. Uma enorme repercussão e solidariedade se espalhou pela internet “Somos todos Guarani Kaiowá”. Milhares de pessoas acrescentaram a seus nome o nome desse povo. A Avaaz conseguiu  mais de 300.000 assinaturas de apoio aos direitos desse povo.  Em mais de uma centena de cidades realizaram manifestações e atos públicos de apoio a esses povos. Podemos dizer que o Brasil e o mundo foram  um pouco mais Guarani Kaiowá,  solidarizando-se e apoiando a dura luta pela vida e pelos seus territórios.

A Campanha "Eu apoio a Causa Indígena

A Associação de Juízes pela Democracia, juntamente com o Cimi, efetuaram, no decorrer deste ano, uma importante campanha de cartas de apoio aos povos indígenas, conseguindo mais de 20.000 assinaturas. Dentre as adesões  figuram ilustres nomes da luta dos direitos humanos no país e no mundo.

No dia 4 de dezembro foi realizada a entrega dessas assinaturas nos três poderes. Num ato público na Câmara dos Deputados  foi ressaltada a importância desse fato, pela juíza Kenarik, que, emocionada, se referiu à grande dívida que os três poderes tem para com os povos indígenas. Citou uma frase que ouvira de uma indígena Kaiowá Guarani "Nós somos humanos, temos sentimentos como vocês".  Isso em pleno século 21.

Uma delegação fez a entrega no gabinete do presidente do STF, Joaquim Barbosa. Foi manifestado o interesse de dar urgência ao julgamento das ações que envolvem os direitos dos povos indígenas.

Em frente ao Palácio do Planalto fizeram um ritual e protocolaram a entrega das assinaturas.

Os três poderes se esmeraram em suas ações sutis ou virulentas contra os povos indígenas neste ano de 2012. A bancada ruralista e seus aliados das empreiteiras e mineradoras, depois da vitória no Código Florestal, investiram todas as suas forças em impedir a demarcação das terras indígenas - PEC 218 e 038, além de abrir as terras indígenas para a saque dos recursos naturais, principalmente madeira e minérios - PL 1610.

O Executivo não deixou por menos. Com a catastrófica Portaria 303, assinada pelo presidente da Advocacia Geral da União, o governo brasileiro  esperava com uma única canetada resolver a questão de todas as terras indígenas, evitando a demarcação de qualquer terra indígena e escancarando as já demarcadas à farra do grande capital nacional e internacional.

O Judiciário, especialmente nas instância locais, tem se mostrado zeloso em julgar  com rapidez as reintegrações de posse contra os índios, e extremamente lento e com decisões contrárias aos direitos constitucionais dos povos indígenas. Uma das raras exceções foi a decisão do Supremo Tribunal Federal, reconhecendo o território dos Pataxõ-Hã-Hã-Hã. Diz se que a justiça tem uma velocidade de onça para os ricos e de jaboti para os índios e pobres.

"Sem a energia da natureza em nossa alma"

Após mais uma maratona de luta pelos seus direitos, em Brasília, os Kaiowá Guarani retornaram para seus acampamentos e áreas de conflito no Mato Grosso do Sul, certos de que deram mais um passo na difícil luta por seus direitos, especialmente a terra-território.

Oriel Benites, membro do Conselho Continental Guarani, em pequeno manuscrito, assim expressou seu sentimento com relação à luta que vem enfrentando, para reconquistarem seus territórios e condições de viverem o seu teko - jeito de viver Guarani:

 “Nós estamos vivendo sem a energia da natureza na nossa alma, no nosso espírito, até no nosso mundo fisicamente percebemos isso. Precisamos desse espaço, nossa terra sem males, onde está derramado  um pouco do nosso sangue, osso e carne,  que corrompe sempre naquela terra que uma boa parte ainda está viva, onde queremos sentir essa força da natureza no nosso sangue, na nossa vida. Essa necessidade que nos motivou para lutar porque nossa força em conjunto é imbatível.

A terra onde estão plantadas soja, cana, criação de animais ou empresas de agrotóxicos, entre outras no Mato Grosso do Sul, essa terra  está repleta de sangue indígena. O dinheiro que os grandes empresários, fazendeiros, garimpeiros, proprietários das cerrarias  e muitos outros proprietários aqui no Brasil estão manchados de sangue Kaiowá Guarani.

Nós queremos viver de maneira que a nosso cultura, costume e rituais permite – ar fresco, água da mina, frutas naturais. Essa é nossa santa ceia que não temos mais por causa da superlotação nas áreas demarcadas pelo SPI (confinamentos)  e a demora da demarcação da terra Kaiowá Guarani”

A partir do dia 10 deste mês mais uma comissão estará visitando a situação de genocídio a que estão submetidos os Kaiowá Guarani, especialmente nas áreas de conflito, retomadas, acampamentos à beira das estradas e confinamentos. Está prevista uma dezena de deputados e senadores que estão ouvindo também os não indígenas, fazendeiros, membros do agronegócio e representantes do Estado.

Egon Heck

Povo Guarani Grande Povo, 8 de dezembro de 2012

 


O dia internacional do Direito à Verdade


O dia internacional do Direito à  Verdade

Numa audiência pública despretensiosa, presidida pela aguerrida deputada Luiza Erundina, o Brasil preencheu as condições para levar à aprovação do Congresso a instituição do "dia internacional do direito à Verdade". O Dia 24 de março, em homenagem Dom Romero das Américas, foi instituído pela ONU, em 2010, como a data  comemorativa ao Direito à Verdade em todo o mundo.

Os participantes da audiência pública, insistiram na importância simbólica dessa data, pois será um momento a mais para que o país busque fazer justiça, recuperando a memória perigosa das vítimas da secular resistência no país e no continente.

Em nome do Cimi expus algumas reflexões que passo a socializar.

Desconstruir a memória colonialista.

Ontem aqui nesta casa, um Ato Público  em apoio à causa indígena, promovido por esta mesma Comissão de Direitos Humanos, duas manifestações chamaram atenção. Uma delas foi quando a desembargadora, juíza Kanarik não conteve as lágrimas ao afirmar "é inacreditável que em pleno século 21 tenham que afirmar: nós somos humanos, nós temos sentimentos como vocês". Só faltava algum papa ter que fazer uma bula afirmando que os índios tem alma. Abominemos de uma vez por todas essa mentalidade criminosa que ainda norteia muitas das elites, governantes e Estados nacionais. Como sociedade de verdade, façamos justiça declarando na prática nosso anátema a essas afirmações e posturas genocidas, racistas e fascistas. Desconstruir e descolonizar a memória significa uma decisão política com estratégias concretas neste sentido. Deixemos-nos inundar com os nobres sentimentos que vem da raiz deste continente, de seus povos originários, dos heróis da resistência.

Desconstruir a memória do invasor, do colonizador, do capital nacional e internacional, ontem e hoje, significa não apenas reconhecer a pluralidade de povos , culturas, crenças, organizações sociais e direitos consuetudinários em nosso país, mas requer a imediata devolução de seus territórios, e as condições para viverem em paz e com dignidade. Isso requer rever o panteão dos heróis, dentre os quais estão vários matadores de índios, ter a  coragem de fazer fogueiras com livros que continuam veiculando mentiras sobre os povos indígenas em nossas salas de aula, veicular a verdade com relação à realidade, lutas e valores dos povos indígenas. Dizia ontem, nesta casa a indígena Pierangela Wapixana, de Roraima, "é difícil os não índios nos entenderem, enxergarem além das  aparências, a nossa relação com a mãe terra e a natureza,nosso espírito, nossa alma, nossos sentimentos".

Extirpar a impunidade, violência e injustiça

Infelizmente continuamos sob o manto da arbitrariedade que estimula a violência,  promove a impunidade e sacraliza a injustiça. Precisamos urgentemente descolonizar não apenas a memória, mas como diz Fernando Ortiz, em recente entrevista "A descolonização deve ser não apenas política ( do poder) e econômica, se não também mental, cultura e ideológica".

Portanto temos uma árdua e imprescindível tarefa de mudanças profundas, sistêmicas e mentais, para o qual a criação da comissão indígena da verdade e o dia internacional da verdade poderão contribuir.

Os Kaiowá Guarani que ontem estiveram no congresso em Brasília disseram com todas as letras "não agüentamos mais". O genocídio em curso, conforme a deputada Érica Kokai, nos desafia e impele não à repetição de discursos e falas bonitas, mas a ações concretas e inadiáveis. Certamente não queremos entrar para a história como cúmplices e exterminadores de povos. Esses povos nos repetiram milhares de vezes que tem que se começar pelo reconhecimento e garantia de seus territórios. Com isso esperam diminuir a absurda violência a que estão submetidos. E outro passo urgente é julgar e punir os assassinos das lideranças indígenas. "Mata-se índio, como se mata um cachorro", nos dizem as lideranças em suas falas. E nada se faz. Nenhum matador de índio no Mato Grosso do Sul foi julgado e punido. Ao contrário centenas de nossos parentes estão mofando nas cadeias da região. Centenas de processos que envolvem nossas terras estão paradas nos tribunais e não são julgadas para permitir a continuidade dos processos de regularização.  Uma liderança observou que a “justiça é lenta”, para os índios, os negros, os pobres, mas funciona rapidamente para quem tem dinheiro.

Comissão Indígena da Verdade

Nas duas décadas da ditadura militar (1964 a 1985) não imaginávamos que um dia fosse criado uma Comissão da Memória, Verdade e Justiça. Menos ainda que se buscasse um dia restaurar a verdade com relação às mortes e violências sofridas pelos povos indígenas em decorrência da ação do Estado brasileiro.  Parece que finalmente estamos saindo de um pesadelo e massacre secular dos povos indígenas no Brasil. São passos tímidos e difíceis não apenas para criar a Comissão, mas principalmente fazê-la efetivamente funcionar e ir a fundo nos meandros obscuros da tortura, mortes e violências. Porém os passos iniciais são promissores e vai agora depender de empenho e eficiência de todos nós brasileiros e aliados dos povos indígenas e em especial desses povos. Nos dizia com contido entusiasmo, o guerreiro indigenista, Egydio Schwade “Estamos num momento importante da história brasileira. Finalmente a questão indígena está sendo incluída num programa que poderá trazer à  luz fatos tenebrosos, massacres, genocídio de povos e comunidades indígenas.” E  pois a mão na massa. Produziu um texto com mais de 200 documentos indicando a morte de mais de 2.000 índios Waimiri Atroari, com armas pesadas e até bombardeios, nas décadas de sessenta e setenta, por ocasião da construção da estrada BR 174. Certamente muitos outros fatos virão à tona.

Um novo horizonte – O Bem Viver e a Terra Sem Males

Apesar do mar de sofrimento, violência, injustiça e opressão em que está mergulhado o Continente e nosso país, a institucionalização do dia internacional de Direito à Verdade, soa como um leve ruflar das asas de um beija flor em meio a um temporal.

Porém passos importantes estão sendo dados em países como Bolívia e Equador, que tem o Bem Viver inscritos em suas constituições e estão caminhando para o reconhecimento dos Direitos da Mãe Terra – Pachamama,

os Kaiowá Guarani estão construindo importantes estratégias comuns nos quatro países (Brasil, Paraguai, Argentina e Bolívia, para mutuamente se apoiarem na luta por seus direitos, especialmente os territórios. O Conselho Continental da Nação Guarani é uma experiência esperançosa no contexto de luta e reconhecimento de direitos, para além das fronteiras dos  países.

Na busca da Terra Sem Males somos todos caminhantes guiados e precedidos por nossos irmãos Kaiowá Guarani. Que o dia 24 de março se torne não apenas mais um dia comemorativo, mas que seja o dia de mudanças em nossas mentes, corações e estruturas na perspectiva da convivência respeitosa e digna de todos os povos.

 

Egon Heck - Cimi , 6 de dezembro de 2012