ATL 2017

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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

A Verdade Sem Medo



A memoria e a verdade mais do que resultados, produtos, relatórios, são processos coletivos e individuais, de  lutas  por direitos históricos,  por reparação  e justiça.  Com essa percepção e dentro de um momento conjuntural   propícia a iniciativas nesta perspectiva, que foi criada, em agosto de 2013 a Comissão Indígena da Verdade e Justiça.

E tempo favorável à emergência de verdades ocultadas por décadas e séculos.  É a insurgente memória perigosa, que  aflora e  busca seu espaço nos processos de mudanças e transformações sociais, na construção de novas sociedades.

A Comissão Nacional da Verdade, criada por pressão da sociedade civil, em 2012, ensejou a criação de inúmeras comissões país afora, à semelhança do que ocorreu em outros países da América do Sul, como Argentina e Chile. Foi nesse bojo que se constituiu a Comissão Indígena da Verdade e Justiça, criada pelo movimento indígena e aliados. São ferramentas para dar vazão a urgente necessidade de passar a história colonialista a limpo e dar a voz e a vez às vítimas, aos oprimidos, em especial os que sempre foram preteridos e relegados a segundo plano e discriminados, como no caso dos povos indígenas.

A Comissão Indígena da Verdade e Justiça esteve reunida em Brasília para avaliar o andamento dos trabalhos e traçar rumos e definir   estratégias. Participaram lideranças indígenas, pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB, Coiab, Apoime, Atyguasu, Arpinsul e  entidades  aliadas, dentre as quais o Cimi, Armazém da Memória, Universidade Federal da Grande Dourados dentre outros.

Num rápido relance da caminhada foram levantados principais desafios e perspectivas. Todos  manifestaram seu desejo de contribuir para que esse instrumento de luta pelos direitos indígenas se consolide e desperte a consciência nacional quanto às violências e genocídio a que foram submetidas as populações indígenas, especialmente pela ditadura militar. Mais do que um bom relatório a Comissão Indígena alimenta a esperança de que se dê visibilidade a fatos marcantes que causaram a morte de aproximadamente 10 mil indígenas durante os 20 anos de ditadura militar. Em consequência de chacinas, transferências forçadas,  epidemias,  pacificações apressadas, torturas, assassinatos, milhares de indígenas, centenas de aldeias foram destruídas.

Um dos objetivos da Comissão Indígena da Verdade e Justiça é dar visibilidade a esses fatos, através de depoimentos e revelação de documentação histórica. Dessa forma também esperam  contribuir com o relatório da Comissão Nacional da Verdade, previsto para ser concluído até o final deste ano. Porém o mais importante é que a revelação desse processo de negação de direitos, violências e genocídio não se repita e perpetue em nosso país.

Otoniel  Kaiowá observou que é importante trazer os velhos pra falar porque eles conhecem toda história. Diz que devemos demonstrar que não existem fronteiras e essas pesquisas vão ajudar a fortalecer a dimensão territorial. Foi dado muita ênfase aos cuidados indispensáveis para a realização dos relatos e depoimentos nas aldeias, sendo isso fundamentalmente uma atividade dos próprios acadêmicos e professores indígenas. Com isso se estará respeitando o espaço, o tempo e a cultura de cada povo, a situação concreta de cada comunidade e a compreensão de cada depoente. Já existem atividades em curso, dentro desses princípios, conforme relatou o professor Neimar, da UFGD. Dia 21 foi realizado um passo importante com audiência-depoimentos de representantes de 5 aldeias/tekohá, em Dourados.

Outra dimensão importante do trabalho é que se chegue a fazer reparação coletiva aos povos indígenas, dentro das perspectivas que está trabalhando o Ministério Publico Federal. Uma das ações que está sendo movida é pelo MPF do Amazonas, com relação aos Tenharim.
Foram elencados quase duas dezenas de povos que tiveram inúmeras mortes diretamente cometidas por agentes do Estado brasileiro ou em decorrências de suas políticas desenvolvimentistas, para que esses fatos sejam levantados em depoimentos e documentos para serem revelados à opinião pública.
Também foi visto e discutida uma proposta de publicação em mais de uma dezena de tomos, relatando extensamente todo esse processo de violência e mortandade sofridas pelos povos indígenas em nosso país.

Com muita determinação e realismo, sem ilusões quanto as dificuldades a serem enfrentadas, os membros da Comissão Indígena da Verdade e Justiça estará se empenhando cada vez mais para que mais pessoas, aliados e voluntários da causa se empenhem na luta pela verdade, sem medo e justiça sem subterfúgios.

Egon Heck
Cimi-secretariado
Brasilia, 22 de fevereiro de 2014


domingo, 16 de fevereiro de 2014

Iasi – a missão cumprida de um guerreiro


Amanhece em Belo Horizonte. Para Iasi já não é como os demais. Normalmente, o

 dia nem dava os ares de sua graça e o incansável guerreiro se punha de pé, fazia sua reza e dava início a mais uma jornada. Agora, acamado, quando comentei sobre seus 94 anos a serem completados no próximo dia 05 de abril,  ele brinca: “se  vivo estiver”.
Com a mesma lucidez e perspicácia, sente a vida passar como um filme. “Quando a gente chega com lucidez nessa idade, a vida vai passando na memória da gente como um filme. Me lembro desde os 4 anos”. Brinquei com ele: “Imagina que longa metragem de 90 anos!”. Ele sorri. Começou a falar da família, da revolução na década de trinta, da casa de comercio de seu pai, da falência, em função da crise financeira, e de sua primeira matricula num colégio público em São Paulo, aos sete anos de idade.
Passo mais de hora e meia com o sereno lutador, que mesmo com algumas dores não se furta a puxar do fundo do baú de sua existência, fatos e retratos marcantes de quem enfrentou, com ousadia destemida, os inimigos dos povos indígenas, especialmente durante a ditadura militar. Como primeiro secretário executivo do Cimi, eleito em Assembleia (1975), fez, com Egydio Schwade, uma dupla  temida pelos militares e poderosos da ditadura.
Por ocasião dos assassinatos dos missionários do Cimi, Pe. Rodolfo e Simão Bororo  de 1976)  Pe. João Bosco Burnier (outubro de 1976), ele fez duras críticas aos mandantes de tais crimes,”dando nome aos bois” – senadores, deputados, prefeitos, vereadores e fazendeiros. Inclusive o governador do Mato Grosso  “Classificando Garcia Neto de ’o governador do faroeste brasileiro’, Pe. Antonio Iasi Junior, afirmou que ‘quando um xerife acusa, sem escrúpulo e levianamente, o clero como sendo uma corporação infiltrada de comunistas e subversivos, não é de se estranhar que policiais a seus serviço, matem o comunista e subversivo...”(Folha de São Paulo, 21/10/1976). Diante desse quadro de insanidade e violência Iasi insiste em atitudes enérgicas e decisivas: “Volto a insistir que somente uma intervenção federal pode resolver o estado de violência no Mato Grosso... Só assim poderemos ver prestando contas à Justiça aqueles que matam, mandam matar e ainda permanecem em liberdade” ( FSP 21/10/76).
No final do texto “Y Juca Pirama - o índio aquele que deve morrer”, do qual foi um foi um dos principais redatores, consta:“O missionário jesuíta Antonio Iasi Junior comentava: ‘os índios estão sempre levando a pior nessa luta em defesa de seus interesses, chega assumir características de quando em quando de tarefa insuportável. Sinceramente não sei por que existe tanta insensibilidade, tanto egoísmo e tanta podridão entre os que se dizem, em alto e bom som, como defensores dos índios” (Voz do Paraná 14/01/1974).
Iasi se deslocou doe Norte ao Sul do país identificando e denunciando as graves violações dos direitos dos povos indígenas, especialmente na década de 70, “do milagre brasileiro” e genocídio indígena. Seus relatórios são referências importantes e contundentes até hoje.
 Despedida e gratidão
“Leve meu abraço de gratidão a todos os companheiros do Cimi e a todos os amigos”, disse-me ele, na despedida. Isso dito de coração e com serenidade, deixa a gente emocionado e comprometido com o belo gesto.
“Sente dores, vislumbra a morte e com ela brinca. Está sereno. Celebra. Reza. Entrega-se por inteiro nas mãos d’Aquele que foi a razão de seu viver e lutar. Na solidão de um quarto, escondido dos holofotes, vive um dos grandes responsáveis pelo CIMI, pela CPT e pelo sucesso na demarcação de muitas áreas indígenas. As coisas de Deus apreciam o silêncio. Falam por si! Que a paixão do Iasi contribua para a ressurreição dos povos indígenas!”. Assim se refere ao Iasi um de seus grandes amigos, Waldemar Bettio, ao compartilhar no meio indigenista notícias sobre esse baluarte da causa indígena.
Nós, do Cimi, somos muito gratos a esse missionário indigenista, testemunha e batalhador destemido pela vida e direitos dos povos indígenas do Brasil.
Vai se apagando uma tocha na terra e acendendo uma estrela no céu!
Egon Heck
Cimi – secretariado
Centro de Formação Vicente Cañas, 13 de fevereiro de 2014.