ATL 2017

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segunda-feira, 22 de maio de 2017

Povos indígenas do sul do Brasil – meio século de luta tenaz


Depois de 40 hora de viagem, tendo saído de Porto Alegre-RS, chegam a um oásis em Luziânia, no centro de formação Vicente Canhas. Foi o tempo de refazer as energias, celebrar o momento de luta e traçar as estratégias para uma semana de intensos debates com representantes dos três poderes do Estado brasileiro.


Meiê  aviventa as brasas, coloca sobre elas umas grimpas de pinheiro e  lança um punhado de pinhão. É o que restou. Arrasaram os pinhais restantes nas terras indígenas do sul do país. Dona Ester traz o chimarrão. Ainda é noite na aldeia do Pinhalzinho, no oeste Catarinense, região de Chapecó. Um grande desafio espera os povos indígenas. Estão planejando uma viagem a Brasília para falar com o presidente da Funai, General Ismart de Araújo, para pedir medidas urgentes no sentido de desintrusar ( retirar) os invasores de seus territórios. Na terra indígena Xapecó, no oeste catarinense, existiam cinco vilas de “fog”(brancos, não índios. E na Terra Indígena Nonoai, no Rio Grande do Sul, a situação era ainda pior – eram dez mim pessoas invasores da terra indígena e aproximadamente hum mil índios.



Era final do ano de 1975. Tempos de chumbo e do milagre brasileiro. O  então ministro da Fazenda,  Delfim Neto, propalava aos quatro ventos a sua estratégia redentora, que era de fazer primeiro o bolo crescer para depois distribuí-lo. Cresceu para uns poucos, e a ditadura se esqueceu de distribuir os vultosos ganhos de multinacionais e empreiteiras, principalmente.
Maio de 2017. Os Kaingang, Xokleng e Guarani, chegam novamente em Brasília. Qual não é a surpresa ao constatarem  que os problemas continuam quase os mesmos: terra, violência, racismo, fome e discriminação e ódio aos povos originários.

É gratificante perceber que as sementes plantadas naqueles idos de 1970  converteram-se  em aguerridos  movimentos de luta pelos seus territórios e direitos, num tenaz processo de luta e mobilização continuada. Mas também é preciso reconhecer  que não conseguiram consolidar processos de autonomia em seus territórios e  construir a unidade necessária e indispensável em suas lutas e projetos de vida e bem viver. Continuam sendo explorados e dominados pelos não índios e suas terras assediados pelos fazendeiros e agronegócio, levando em muitos casos aos perigosos processos de negociação e arrendamento das terras.

Enquanto vivos, a luta continua

“Temos que fazer brotar o espírito guerreiro que está em nosso coração. Viver ou morrer”, externou uma liderança Kaingang. Entende que estão sendo empurrados para uma guerra muito difícil. Culpam o governo por não ter cumprido suas obrigações, principalmente a demarcação e garantia de suas terras.


Denunciaram a total paralização da regularização de suas terras, sendo mais de uma dezena de terras Kaingang e uma centena de terras Guarani precisam ter seus processos  iniciados ou concluídos.

Diante do cenário criminosamente anti indígena e inconstitucional, os povos indígenas do sul do Brasil  unem aos demais povos para realizar as autodemarcações, fazendo cumprir a Constituição e legislação internacional sobre os direitos dos povos originários.
 O relatório da CPI da Funai e Incra, que  está praticamente aprovado, é considerado  vergonhoso,  criminoso e panfletário, por  membros da CPI.

No conturbado cenário nacional os povos indígenas continuarão lutando por seus direitos na certeza de que Deus, Tupã, Topen, Nhanderu e todos os espíritos dos guerreiros e encantados estarão a seu lado na garantia da vitória.

A memória das lutas, dos guerreiros que tombaram pela vida  são armas importantes para seguir no caminho e luta pelos direitos. Em 1975 encontraram o general Ismart na presidência da Funai, agora encontram novamente um general, Franklimberg, na presidência do órgão que os ruralistas querem extinguir, promovendo, conforme declarou um deputado membro da CPI, “limpeza ética e moral”.

Egon Heck    fotos Laila/Cimi
Cimi Secretariado Nacional
Brasília 19 de maio de 2017














quinta-feira, 11 de maio de 2017

Funai – de General a General



  “A Amazônia só será nossa quando for habitada por brasileiros e não por índios que não tem nacionalidade” (Brigadeiro Protásio Lopes de Oliveira – A notícia-Manaus 26/01/1980). Em outra ocasião o mesmo militar se referiu aos índios como “ quistos populacionais,  quistos raciais e quistos linguísticos”

 “A nomeação pelo Ministro Chefe da Casa Civil, do General Franklimberg Ribeiro de Freitas para exercer o cargo de Presidente da Funai, constitui mais uma afronta aos povos e organizações indígenas de todo o país. Desde 2016 já  se posicionaram contra a nomeação do referido militar para a presidência do órgão”. Com semelhante afirmação a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)  deixa claro seu repudio ao governo Temer por mais essa agressão aos habitantes originários dessa terra,  assim como afirmam sua  posição contrária ao loteamento partidário de cargos, o desmonte da Funai e da militarização da questão indígena.
Basta  um olhar crítico para  ver a efetiva “solução final” da questão indígena buscada pela ditadura militar. Ou seja, chegar ao ano 2.000 sem  mais ter índios no Brasil. Esse não era um vago ou isolado desejo de alguns. Essa meta foi buscada tenazmente através de políticas e mesmo projetos de lei, como o da “emancipação”,  “índios aculturados”, “Critérios de indianidade”, dentre outros.
Corroboram essas teses afirmações de militares e agentes da ditadura “Não podemos deixar que meia dúzia de índios atravanquem o progresso do Brasil”. Afirmação feita diante da negativa dos índios do Xingu de deixar que a Estrada BR 080 cortasse o parque indígena .
Naquela ocasião o Ministro da Agricultura, general Cirne Lima afirmou  que “a estrada iria levar a civilização do boi, para aqueles afastados rincões”.
É bom lembrar a afirmação do Brigadeiro   Protasio Lopes “A Amazônia só será nossa quando for habitada por brasileiros e não por índios, que não tem nacionalidade (Belém, A Notícia 26/01/1980).
E não são coisas do passado remoto não. No início deste século o então senador Delcídio do Amaral propôs um projeto de lei para que não permanecessem índios dentro da faixa de fronteira ( 150 km). Isso implicaria na remoção de inúmeros povos de seus territórios tradicionais, para outras regiões do território brasileiro.
Em 1977 o General Frederico Rondon, na CPI da Funai, repetiu seu entendimento de que o índio é um soldado nato e a tribo uma organização paramilitar, reafirmando a necessidade de recriar a Guarda Rural Indígena ( GRIN) ressaltando o “espírito militar” do índio brasileiro.
A respeito do primeiro general a assumir a presidência da Funai – Oscar Bandeira de Melo (1969 a 1974), afirmou o indigenista Orlando Vila Boas “Bandeira de Melo instituiu o modelo   mais eficaz de exterminar  índios”. O general ora nomeado para  presidente da Funai, pelo atual governo, certamente tem a missão de facilitar e abrir os caminhos dos grupos antiindígenas encastelados no Estado brasileiro. Hoje está sendo votado o relatório da CPI Funai, Incra 2, que além de indiciar mais de uma centena de indígenas e seus aliados, pede a extinção da Funai.


Poderíamos elencar inúmeros dados, indícios, ações e políticas implementadas pelos  governos militares com relação aos povos indígenas, que certamente estão embasando o posicionamento do movimento e organização indígena e seus aliados com relação aos intentos de militarizar novamente o órgão indigenista oficial.
“Com a nomeação de Framklinberg, o governo Temer promove a militarização da Funai, como nos tempos da ditadura militar, a fragilização total do órgão e a perspectiva de mudança nos procedimentos de demarcação das terras indígenas, em favor da implementação da agenda neoliberal desenvolvimentista e em detrimento da autonomia e protagonismos dos nossos povos.” (Nota da APIB)
Quem acompanhou de perto o indigenismo militar da ditadura percebeu o quanto ele é estatizante, autoritário e repressor, centralizador, integracionista e assimilacionista e tutelar. Pelos acontecimentos recentes  na repressão à manifestação pacífica dos  mais de 4 mil indígenas, em Brasília, são um indicativo claro de que não existe nenhuma vontade do atual governo de dialogar com os povos originários. Outro indicativo  do atual governo é que este já é o quinto presidente do órgão em um pouco mais de um ano do golpe.
Convocação
A Apib, por fim, “conclama a todos os povos, organizações regionais e de base a se mobilizarem mais uma vez contra essa avalanche de retrocessos, de esfacelamento das garantias e direitos constitucionais, que ameaçam a diversidade étnica e cultural dos nossos povos e o nosso direito originário às nossas terras tradicionais”.
Esse é, lamentavelmente, o contexto. Esse é o grito dos povos indígenas do país conclamando  para a resistência e afirmação de seus projetos de Bem Viver e seus direitos originários e constitucionais.
Não à militarização da Funai!



Egon Heck
Cimi – Secretariado nacional
Dia da votação do Relatório da CPI da Funai e Incra
Brasília 10/05/2017



segunda-feira, 1 de maio de 2017

ATL 2017: armas, prepotência e colonialidade



“Nós, filhos e donos da terra, poderíamos desarmar eles (policiais). Essa é a nossa casa. Porque não podemos ir com nossas armas (arco e flecha, bordunas, maracá...)? Somos brasileiros também. Eles poderiam nos respeitar. Não podemos ir para casa sendo humilhados” (Gersina Krahô). Aplausos e silêncio. A mesma posição, radical e corajosa, foi manifestada pelo seu irmão, que indagou aos participantes do Acampamento Terra Livre (ATL): “Por que não podemos ir com nossas armas se eles vão armados? Os espíritos também estão vendo”.

Essa posição da guerreira e guerreiro Krahô foi acatada pelo acampamento que entendeu que os parentes poderiam ir para a caminhada com todos os seus instrumentos sociais e culturais. Enquanto isso, uma delegação indígena estava negociando com o comandante da Polícia, que foi irredutível: “Arco, flecha e tacape não passam”. Havia duas barreiras militares, uma da Polícia Militar do Distrito Federal e outra da Força Nacional.
Após mais algumas ponderações foi sugerido que seguissem na passeata apenas com os maracás, pois seria uma caminhada ritual. E assim se evitaria qualquer desdobramento, em termos de confronto.


Os rituais, começados após o almoço, foram se espalhando por todo o espaço do Acampamento. O objetivo maior da passeata seria a entrega do documento final do Acampamento às autoridades de alguns ministérios. E assim aconteceu sem incidentes, apesar da forte presença militar, inclusive com cães e cavalos. Recado dado, pacificamente. Por que tamanha prepotência e falta de condições de um diálogo em pé de igualdade? Repetiu-se a velha lógica colonial da imposição à força da vontade da dominação secular. Aliás, essa tem sido a atitude quando inúmeras delegações indígenas foram impedidas de entrar no Congresso Nacional, quando aí estavam sendo debatidos temas a respeito dos povos indígenas, numa clara afronta aos direitos indígenas, e a legislação nacional e internacional.

Solidariedade nacional e internacional



No último dia do ATL houve várias manifestações de solidariedade aos povos indígenas na luta por seus direitos, especialmente a demarcação e respeito a seus territórios. Representantes indígenas de países como a Indonésia, Bolívia, Equador e a Guatemala, manifestaram apoio e solidariedade aos povos do Brasil na luta por seus direitos. A constatação de que as lutas dos povos originários em todos os continentes é basicamente a mesma: respeito por seus territórios, recursos naturais, expressões culturais e formas de vida e organização com autodeterminação.  A luta dos povos originários não tem fronteiras pois é uma luta humanitária, portanto de toda a humanidade.
Importante solidariedade foi a manifestada pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos, cuja coordenação se fez presente no Acampamento, para trazer seu apoio aos direitos indígenas, denunciando toda forma de violação de seus direitos, violências e criminalização de suas lideranças. Assumiram algumas ações bem concretas, expostas pela procuradora-geral da República, Dra. Déborah Duprat.  Denunciar o ministro da Justiça em sua manifesta ação de enfraquecimento da Funai; apuração da truculência da polícia contra os participantes do ATL; denúncia de todas as vezes que os índios tiveram acesso negado ao Congresso Nacional.

A força das falas e rituais

“Esse foi um acampamento atípico, não apenas pela sua enorme diversidade de povos participantes, com aproximadamente 4 mil pessoas, mas também pela intensidade e beleza dos rituais e as inúmeras falas de denúncias e afirmação de seus direitos, e violências perpetradas pelo Estado brasileiro e pela ganância das elites gananciosas das elites econômicas e políticas”.
Alguns depoimentos foram feitos entre lágrimas, como foi o caso de uma mulher Munduruku, ao denunciar as constantes violências a que são submetidos, especialmente pelos grandes projetos que ameaçam suas vidas.
Dentre as falas com a força dos espíritos, emanadas da entranha da vida, da dor e da esperança, destacaram-se as de inúmeras mulheres, pela sensibilidade e profundeza de seus sentimentos, como também pela coragem, firmeza e determinação na luta.

Martírio e Mapa Guarani Continental



Ao final do ATL 2017, duas importantes ferramentas para a luta foram apresentadas. O Mapa Guarani Continental, em pré-estreia, foi apresentado por lideranças Guarani-Kaiowá. É um mapa elaborado no âmbito da Campanha Guarani. Resultado de um trabalho coletivo que envolveu pessoas e instituições da Argentina, Bolívia, Paraguai e Brasil. O movimento indígena Guarani participou ativamente na construção dessa importante ferramenta da luta desse povo.  Foram identificados e colocados no mapa 1.416 comunidades Guarani, num total de 280 mil pessoas. Segundo o antropólogo Georg  Grunberg, um dos coordenadores desse trabalho, “os Guarani, sua cultura e resistência são tão impressionantes e importantes para a humanidade, que se não existissem teriam que ser inventados”.
E para que todos tivessem um pouco mais de informação sobre o genocídio e martírio a que está sendo submetido o povo Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul, nada melhor do que assistir o filme de Vicent Carelli, “Martírio”. Além da tenaz resistência e sofrimento desse povo, o filme retrata o processo histórico a que todos os povos indígenas do país, os resistentes e os extintos, foram e estão sendo submetidos. O diretor do filme esteve presente no ATL para o debate.

Egon Heck – Fotos Laila Menezes
Cimi Secretariado Nacional

28 de abril 2017