ATL 2017

ATL 2017

terça-feira, 5 de maio de 2015

Lutar não foi em vão




Linda celebração. Comovente. A catedral repleta de gente se juntando em hinos de gratidão e louvor a Deus pelo testemunho do profeta Dom Tomás Balduíno. Um ano transcorreu desde sua partida para a morada do Pai, onde com  todos os povos vamos um dia nos encontrar. Luar lindo. Cheia, a lua veio se juntar ao coro das gentes e da natureza num grande momento da memória perigosa de um guerreiro destemido.

Dom Eugênio, bispo da Diocese de Goiás, expressou sua admiração pelo profeta Tomás, reafirmando que a melhor maneira de fazermos a memória e honrar essa bonita e radical obra de um homem de fé, é dar continuidade às suas obras e sonhos, na luta pela terra e pelos que a amam e respeitam, como os povos indígenas, as populações tradicionais, os sem terra e todos os expulsos da terra. Manifestou o compromisso assumido pela Diocese de Goiás de dar continuidade à luta de Dom Tomás no apoio incondicional aos povos indígenas na luta por seus direitos, especialmente a terra/território.
Canutto, em nome da CPT Nacional, lembrou que a Comissão Pastoral da Terra, tem se sentido um tanto órfã, com a morte de Dom Tomás. Mas que ao contrário de sentir-se inibida em sua missão de luta pela terra, reforma agrária e justiça no campo,  tem a certeza que essa luta está se fortalecendo, agora com a intercessão de Dom Tomás.
Em nome do Cimi destaquei a importância da celebração dessa memória perigosa do profeta Tomás. Em contribuição com essa memória, relatei fato ocorrido em 11 de janeiro de 1977. Naquela ocasião, se realizava na missão Surumu, em Roraima, uma das primeiras assembleias de tuxauas (caciques) e lideranças indígenas daquele território federal. No reinício dos trabalhos da tarde, uma surpresa. Dois representantes da Funai e da polícia, dirigiram-se à assembleia exigindo a retirada de Dom Tomás, presidente do Cimi, do recinto. Caso contrário o encontro seria dissolvido. Era ordem do general Ismarth de Araújo, presidente da Funai. Após o impacto da ameaça, o presidente do Cimi se levantou e exclamou: “Daqui só saio preso”!
Instantes de perplexidade. Os índios confabularam entre si, decidindo pela retirada de todos do local. Eles foram concluir sua assembleia em outro local. Só assim Dom Tomás e Egydio se retiraram.
Um representante dos acampamentos e assentamentos da região ressaltou a insistência de Dom Tomás de que a Igreja deveria estar junto do povo e com ele fazer a caminhada de libertação. E como fruto dessa opção, foram se criando os grupos de vivência do Evangelho e as Comunidades Eclesiais de Base. Relatou também momentos impressionantes em que se manifestou profundamente a fé e luta de Dom Tomás.
No final da emocionante celebração, ecoaram canções que expressam a Igreja peregrina, para a qual lutar não foi em vão.  Ao contrário aí estão os testemunhos de uma Igreja que caminha com o povo em suas lutas por direitos, justiça e libertação. Foi também entoada uma canção feita em memória do lutador que estava sendo lembrado, de maneira especial dentro do grande número de mártires e profetas da atualidade: “Um silêncio que se faz, cai a tarde, bate o sino, segue em frente, vai em paz, para sempre, Balduíno”.

Urubu-ka’apor em pé de guerra

Essa é a manchete que se podia ver na imprensa em agosto do ano 2.000 (Folha do Paraná, 24/08/2000) seguido da explicitação “Índios vão aos EUA denunciar invasão de áreas”. Na matéria, três caciques da nação urubu-ka’apor relatam os objetivos da viagem “vão denunciar no Museu do Índio Americano e na Organização das Nações Unidas-ONU, em Nova York, a invasão de suas terras por fazendeiros e madeireiros e o descaso das autoridades brasileiras quando à demarcação de suas terras... A cada dia aumenta o número de invasores para roubar madeira... é a nossa última tentativa de chamar atenção da opinião pública brasileira e estrangeira para os problemas que estamos enfrentando... desde 1991 existe uma liminar de reintegração de posse concedida pela Justiça Federal do Maranhão em favor dos índios. Essa liminar já foi revalidada cinco vezes, mas não cumprida” (idem).
Quinze anos depois. Uma delegação de indígenas brasileiros e aliados denunciam na ONU o assassinato de Euzébio ka’apor em função de sua luta contra o esbulho da madeira pelos madeireiros invasores. O secretário do Cimi, em sua fala no Fórum Permanente da Questão Indígena, na ONU, manifesta a indignação dos povos indígena do Brasil, por mais essa violência e crueldade. Pede que o governo faça uma rigorosa investigação e punição dos responsáveis pelo crime.  Além disso, salienta que a única forma de evitar com que esse tipo de violência continue, é a imediata retomada da demarcação das terras indígenas por parte do governo.
Egon Heck
Cimi-Secretariado
Brasília, 5 de maio de 2015





segunda-feira, 27 de abril de 2015

Da aldeia à ONU – e agora Brasil?

“Tamanhos são os crimes que o Serviço de Proteção aos Índios degenerou a ponto de persegui-los até ao extermínio. Pode ser considerado o maior escândalo administrativo do Brasil” (Jader Figueiredo-1968).

Lindomar Terena leu o documento dos povos indígenas do Brasil
Ainda sob o impacto das manifestações, denúncias e cobranças do 11º Acampamento Terra Livre e das Mobilizações do Abril Indígena de 2015, mais um fato de extrema relevância para os povos indígenas acaba de se concretizar. Um momento de incidência internacional acaba de acontecer, quando lideranças indígenas da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) deixaram suas aldeias e foram ao espaço de diálogo das nações, a sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York.

Ali denunciaram aquilo que protocolaram nos três poderes em Brasília uma semana antes. Um documento foi lido por Lindomar Terena, do Mato Grosso do Sul, terminando com sugestões para os membros da ONU.

Embaixo do tapete não cabe mais

É longa a história de ocultação da verdade por parte do Estado brasileiro , com relação à trágica realidade  a que estão submetidos os povos indígenas. É o famoso jeitinho de jogar a “sujeira debaixo do tapete”. Ficaram famosos os intuitos da ditadura militar, de ocultar os processos de violência e genocídio contra os povos originários, sob o manto e discurso de um “progresso” irreversível.  Eram tempos de milagre. O milagre da sobrevivência dos povos, diante da fúria das empreiteiras da ditadura.

Porém, a irrupção de denúncias escabrosas e generalizadas de violência e genocídio dos povos indígenas no Brasil, maculou a ilibada imagem do país, diante do capital internacional a procura dos melhores e mais lucrativos lugares do mundo. A reação não se fez esperar. O governo da ditadura militar chamou organismos internacionais para vir comprovar a falsidade das acusações. Pelo menos três organismos internacionais, dentre os quais a Cruz Vermelha Internacional e a Survival Internacional, estiveram no Brasil no início da década de 1970. O senhor Robin Hambury-Tenison, depois de nove semanas de contatos com inúmeras realidades indígenas, afirmou “que sem ajuda técnica e econômica internacional os 50 mil índios brasileiros desaparecerão em dois anos” (Jornal do Brasil, 08/07/1971). Referente a essa afirmação o diretor do Departamento Geral de Estudos e Pesquisas da Funai, Paulo Monteiro Santos, lamenta que tenha sido feito esse enorme custo pois com esse dinheiro poderiam ter sido instalados dois ou três postos indígenas.  Apesar desse alerta subvencionado o sr. Tenison afirmou que não existia genocídio.

Poucos anos depois, no IV Tribunal Internacional Russel, em Roterdã, na Holanda, o Brasil foi condenado pelo crime de genocídio. Foram denunciadas as situações dos povos Waimiri Atroari, Yanomami, Nambikuara e dos Kaingang, de Mangueirinha, no Paraná (Jornal Porantim, novembro 1980).

Na ONU: anúncios e denúncias

Como parte da mobilização dos povos indígenas por seus direitos e dignidade, uma delegação de representantes indígenas da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), levou ao Fórum Permanente para Questões Indígenas da Organização das Nações Unidas (ONU), no dia 24, em Nova York (EUA), a realidade das comunidades país afora.


Há menos de um ano, a violação aos direitos indígenas havia sido denunciada neste mesmo Fórum. Infelizmente quase nada mudou neste ano, e se mudou em alguns aspectos, como o intento de supressão de direitos indígenas da Constituição, a mudança foi para pior. Aumentaram as ameaças e as violências. Diante dessa realidade o movimento indígena avaliou ser necessário continuar a resistência e afirmação de seus direitos em todos os níveis, da aldeia à ONU.

Os representantes do governo brasileiro tinham acabado de anunciar com ufanismo a realização dos Jogos Mundiais Indígenas previstos para se realizarem na cidade de Palmas, Tocantins, em setembro deste ano. Porém, sentiram-se constrangidos diante das denúncias, feitas poucas horas depois.
Quem sabe não seria um gesto de boa vontade, a demarcação das terras indígenas mais conflitivas em todo país, especialmente no Mato Grosso do Sul, na Bahia e no Rio grande do Sul, a paralização de todos os projetos anti-indígenas que tramitam no Congresso, a aprovação do Conselho Nacional de Política Indigenista e o Estatuto dos Povos indígenas conforme a proposta enviada pelo momento indígena, a exclusividade das condicionantes para a terra indígena Raposa Serra do Sol... Se isso acontecer, o Brasil poderá se dizer um digno anfitrião para os jogos indígenas. Que os jogos não sejam mais um ato para ludibriar a opinião pública nacional e internacional, diante das agressões, desrespeito e omissões do Estado brasileiro.

Como na década de 1970, foi solicitada a presença de observadores internacionais, desta vez pelo movimento indígena: “Que o Fórum Permanente envie urgentemente observadores ao Brasil para que acompanhem a realidade dos conflitos territoriais, e a ofensiva estabelecida contra os direitos indígenas nos distintos poderes do Estado”.

A razão de tal solicitação constante na carta dirigida à vice-presidente do Fórum, Ida Nicolaisen, é pela “forma que o Estado brasileiro está tratando os povos indígenas: o governo federal descumpre a Constituição, os legisladores suprimem e o Judiciário restringe cada vez mais os direitos, principalmente territoriais. Enfim, há no Brasil uma virulenta campanha de criminalização,

 deslegitimação, discriminação e racismo contra os povos indígenas, caracterizados como invasores, subverteres da ordem e principalmente como obstáculos ao desenvolvimento nacional” (Declaração dos Povos Indígenas do Brasil no Fórum Permanente dos Povos Indígenas – ONU, 24/04/2015).

Esse é um momento histórico importante para o Brasil mostrar ao mundo que tem uma decisão política de tratar com respeito e dignidade seus habitantes originários, cumprindo a Constituição e a legislação internacional.  Não tem mais espaço para defender o indefensável, ou seja, a violação das leis.

Egon Heck – fotos Laila Menezes
Cimi – Secretariado Nacional

Brasília 27 de abril de 2015

sexta-feira, 17 de abril de 2015

O poder treme – o Brasil plural e originário avança


Nesta semana Brasília foi a capital do Brasil indígena. A luta e a esperança acamparam na Esplanada dos Ministérios. Talvez pela primeira vez na história desse país, quase 200 povos indígenas deram a cor, o tom e a voz dos primeiros habitantes dessa terra, mostrando quão injusto, cruel e bárbaro está sendo o avanço dos poderosos sobre os territórios indígenas, os recursos naturais, as culturas, religiões e vidas desses povos.
No coração do poder se instalou e processa um espaço de luta, de resistência e afirmação da diversidade e dignidade dos povos primeiros. Quando as raízes se agitam, o poder treme, fecha as portas, se torna mudo e cego para os clamores que brotam do fundo da terra, do grito contido, das leis e dos direitos violados.  O Estado brasileiro teme o poder simbólico e real das lutas indígenas, porque é responsável pela constante violação dos direitos desses povos.

Vigiados e constrangidos

Desde a saída das aldeias e chegada em Brasília, as lideranças indígenas sabiam que estavam sendo vigiadas e controladas pelo serviço de inteligência e repressão do Estado. Um cenário que não lhes é estranho, pois têm sido controlados e reprimidos na luta pelos seus direitos, desde o período do Serviço de Proteção aos Índios, quando tinham seus direitos de ir e vir totalmente cerceados, proibidos de participar dos encontros e lutas de seus povos, sob o manto repressor da tutela, até as formas atuais de aliciamento e cooptação. São as formas neocoloniais de fazer prevalecer os interesses dos poderosos (latifundiários, mineradores, madeireiros, agronegócio e agroindústrias, militares, políticos...) em detrimento dos direitos indígenas assegurados na Constituição brasileira e legislação internacional.
São tolerados apenas em espaços e momentos predeterminados, controlados por forte aparato policial e mesmo assim passando por constrangimentos, como ocorreu na Câmara dos Deputados, no último dia do Acampamento Terra Livre. Foi a confirmação do que o movimento indígena já vinha alertando: de falas e papeis sobre nossa realidade, exigências e direitos os Três Poderes estão abarrotados. Se nada acontece, ou pior, retrocedem e buscam suprimir nossos direitos é porque existe um sistema perverso de negação de nossas vidas e nossa existência enquanto povos e culturas diferenciadas.

Do diálogo da enganação às lutas pela terra e direitos conquistados

 
Lideranças de todas as regiões do país foram se movimentando para Brasília. Os governantes armaram as barricadas dos seus interesses, blindados pela força das armas, sem argumentos convincentes, faziam do “diálogo de enganação” seu cavalo de Tróia. Não é de hoje que as classes dominantes fazem de conta que dizem a verdade, quando essa nada mais é do que o encobrimento de interesses e uma história falaciosa para garantir privilégios e acumular capital.
Os povos indígenas estão fartos de serem ludibriados por discursos enfeitados, mancomunados com o cinismo mordaz das elites dominantes. Tudo vil enganação. Se deixassem cair as roupas da mentira, estaríamos frente a um exército desnudo, desavergonhado.
Cientes dessa realidade os povos indígenas presentes na mobilização nacional e nas regiões deixaram claro sua decisão de lutar por seus direitos, a qualquer custo, nessa guerra que lhes é imposta diariamente. “Vamos defender nossas terras nem que seja com nossas vidas... Não podemos nos acovardar”, externou uma das lideranças.
Restam os duros caminhos do retorno às suas terras tradicionais e a autodemarcação, como forma de pressionar o governo brasileiro, diante de sua omissão e alegação de não ter recursos para resolver a situação.
No documento protocolado no Palácio do Planalto, deixaram claro à presidente Dilma que caso não resolva com urgência a demarcação das terras indígenas, “o seu governo continuará com uma visível incoerência: defender no âmbito internacional o Estado democrático e os direitos humanos, enquanto internamente se permite a perpetuação de políticas e práticas etnocidas e genocidas que há 515 anos vitimam os povos indígenas”.
Os gritos de demarcação já, contra a PEC 215 e todas as iniciativas antiindígenas continuarão a ecoar nos corações de multidões pelo país e mundo afora. As flechas, bordunas e maracás continuarão soando no espírito dos jovens guerreiros e aguerridos anciões. A espiritualidade, rituais e rezas haverão de vencer todos os muros, armas e barreiras!
Egon Heck (texto) fotos: Laila Menezes
Secretariado do Cimi
Brasília 18 de abril de 2015




domingo, 12 de abril de 2015

Mobilização Abril Indígena: raízes e razões da luta


A convocatória se espalhou rapidamente por campos e campinas, florestas e cerrados, rios e igarapés desse imenso Brasil.  Os corações dos povos originários arderam em desejo  rompendo os limites das aldeias e comunidades, para ganhar o mundo,  em forma de grito e clamor: “O ataque sistemático aos direitos dos povos indígenas é inadmissível numa sociedade democrática e plural, onde esses direitos são hoje tratados como moeda de troca e objetos de barganha política. Mas os povos indígenas já deram provas suficientes de que não cederão a essa nova ofensiva, carregada de ódio, discriminação, racismo e incitação à violência, promovidos pelos donos ou representantes do poder político e econômico.”
Muitos queriam vir a Brasília, no 11º Acampamento Terra. Apenas uns mil conseguirão chegar até o centro de decisão onde se tramam tantas decisões nefastas contra os povos indígenas, quilombolas, populações tradicionais e a mãe terra.  A maioria estará se mobilizando, dando sua força e solidariedade em suas regiões.  Será uma explosão de insatisfação e de luta pelos direitos em todos os rincões do país.  Será o abril indígena em mobilização.

As raízes da mobilização indígena
As raízes estão na resistência secular dos primeiros habitantes dessa terra.  A invasão foi uma guerra permanente. Cada palmo de chão sagrado, assegurado ou reconquistado, foi uma batalha. Nada foi dado de mão beijada.  A sobrevivência foi uma arte de muita sabedoria. A razão maior da luta é a confiança e a certeza da vitória. Quem suportou mais de cinco séculos de massacres e opressão, não haverá de morrer na praia. De menos de cem mil na década de 1960, hoje estão beirando a um milhão de indígenas.
Sentem que a invasão continua. Invadem as terras e os corações. Aliciam as mentes, destroem as sementes, espalham a dor, a fome, a dominação. Sonham com um Brasil sem índios, espalham decretos de morte e anunciam que o fim dos povos originários é uma questão de tempo.  Não mais usam o fuzil ou metralhadora. Hoje matam com a lei. PEC, PLs e portarias. Aperfeiçoaram as armas. Matam silenciosamente não só o corpo, mas também as almas a cultura. Razões não faltam para se manter as mobilizações.


Das raízes brotaram os galhos, folhas e frutos
Quando em abril de 2003 um pequeno grupo de indígenas do sul do Brasil, especialmente Kaingang, Guarani e Xokleng, acampou  na Esplanada dos Ministérios, não imaginavam estar inspirando um importante processo de mobilização do movimento indígena no Brasil. Somando-se a essa ação, representantes do Conselho Indígena de Roraima, vieram manifestar a aliados, como o Cimi, a intensão de realizar anualmente encontros para pressionar a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol. No que conseguiram total apoio para uma ampla mobilização, tendo então surgido a proposta de realização, em abril de cada ano, do Acampamento Terra Livre. Desde então, na Esplanada dos Ministérios, em frente ao Ministério da Justiça, se realiza o grande momento político dos povos indígenas do Brasil, o Acampamento Terra Livre – ATL.
Em 2009, finalmente, foi homologada a terra indígena Raposa Serra do Sol, razão maior do ATL daquela época.  Em 2010, a mobilização se deu em duas regiões onde os direitos indígenas estavam mais ameaçados: no Mato Grosso do Sul, a gravíssima situação dos Kaiowá Guarani e Terena, e no Pará, em função da construção da hidrelétrica de Belo Monte, ameando a vida e os direitos de vários povos indígenas. Em 2012, a mobilização Terra Livre se realiza no Rio de Janeiro, por ocasião da Rio +20, juntamente com a Cúpula dos Povos. Vários representantes de povos originários de outras partes do continente e do mundo estiveram presentes.   
Com uma participação em média entre 700 a 1.000 representantes de uma centena de povos, os acampamentos têm se constituído no amplo espaço político de luta e articulação nacional do movimento indígena. É o momento de debate, definição de estratégias e de visibilidade às lutas e reivindicações indígenas. 
O grande fator de mobilização tem sido a questão das terras/territórios indígenas. É em torno da demarcação e garantia das terras e usufruto exclusivo dos recursos naturais nelas existentes, que os povos tem se mobilizado, fundamentalmente. Olhando os documentos finais dos dez ATLs se percebe a centralidade da questão territorial. Além da falta de definição e execução clara de políticas públicas coerentes, nas áreas de saúde, educação e sustentabilidade, tem se sobressaído a falta de definição clara de uma política indigenista.  Não avançou a criação do Conselho Nacional de Política Indigenista, permanecendo até hoje como simples Comissão, de consulta e não de deliberação. Também as manifestações se deram em torno do sucateamento do órgão indigenista, a Funai, como política deliberada dos sucessivos governos nas últimas décadas.
Nos últimos anos as preocupações do ATL giraram bastante em torno das ameaças as direitos indígenas, através de uma série de iniciativas e ações em nível dos três poderes, e com maior intensidade no Poder Legislativo e a total paralização dos procedimentos de regularização das terras indígenas.  Isso fica evidenciado nos documentos dos últimos dois acampamentos indígenas.
No ATL de 2013:
1. Repudiamos toda essa série de instrumentos político-administrativos, judiciais, jurídicos e legislativos, que busca destruir e acabar com os nossos direitos conquistados com muita luta e sacrifícios há 25 anos, pelos caciques e lideranças dos nossos povos, durante o período da constituinte;
2. Não admitiremos retrocessos na garantia dos nossos direitos, sobretudo se considerarmos que o passivo de terras a demarcar é ainda imenso. Das 1046 terras indígenas, 363 estão regularizadas; 335 terras estão em alguma fase do procedimento de demarcação e 348 são reivindicadas por povos indígenas no Brasil, mas até o momento a Funai não tomou providências a fim de dar início aos procedimentos de demarcação”.
Já no ATL de 2014:
É por essa razão que protestamos hoje no Ministério da Justiça contra a paralização dos procedimentos de demarcação e exigimos:
- A imediata publicação de todas as portarias declaratórias, despachos de identificação e delimitação, e decretos de homologação (conforme anexo) que se encontram paralisados sem nenhuma razão confessável.
- A desistência de todas as medidas genocidas que paralisam a demarcação das nossas terras, incluindo a Minuta de Portaria proposta pelo MJ, e também a revogação da Portaria 303/AGU.
Nossos guerreiros e lideranças continuarão em luta até que nossas reinvindicações legítimas e constitucionais sejam atendidas, e não nos curvaremos diante da repressão e das injustiças do Governo dos brancos, que nos oprime há mais de quinhentos anos.

Sem terra não há cultura, sem terra não há saúde, sem terra não há vida!

Toda força aos que lutam!”.

Ao comemorarmos os 41 anos do surgimento de um movimento indígena inédito e combativo, ligado aos movimentos de lutas sociais por transformações profundas nos países da América Latina, num promissor esforço para a superação das ditaduras e colonialismo, na construção de sociedades de Bem Viver, fazemos memória da 1ª Assembleia Indígena Nacional, realizada em Diamantino, Mato Grosso, em abril de 1974.

O grito guerreiro, do fundo da terra, da floresta ou da raiz continuará anunciando um novo amanhecer. Não podem matar nosso sonho. “Somos lutadores resistentes de uma causa invencível”.

Com os povos indígenas, originários de todo o continente, Abya Yala, com os quilombolas, populações tradicionais, com os empobrecidos e oprimidos, queremos renovar nossa profunda convicção de que da vida negada e da árvore decepada, permanecerá a raiz de onde brotarão flores e frutos, novos projetos de sociedade, de Bem Viver.

Egon Heck
Acampamento Terra Livre 2015

Brasilia, 10 de abril de 2015

terça-feira, 7 de abril de 2015

Por um Brasil sem ditadura e sem colonialismo


“Num encontro com a presidente Dilma, eu falei pra ela que era preciso descolonizar o país. Ela me respondeu que já está descolonizado. Pensei comigo: essa é uma prova de que ela não conhece e não quer conhecer o país a partir de sua raiz, os habitantes primeiros, os povos originários desse país”.

Era primeiro de abril em Porto Alegre. Coincidência. Em debate os 51 anos do golpe militar civil.
Em torno de uma centena de pessoas preocupadas em debater o passado para entender o presente e traçar estratégias de um futuro melhor para a população brasileira, particularmente os empobrecidos, as populações tradicionais, os trabalhadores do campo e da cidade, os sem terra, e os povos indígenas, estavam reunidas no seminário nacional promovido pelo Andes (Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior). Nos debates, os diversos aspectos dos 21 anos de ditadura militar, civil/empresarial de 1964 a 1985 foram debatidos e aprofundados. A intensão foi também ter uma visão latino-americana dos processos de ditadura, anistia e formas de punição dos responsáveis pelas graves violações dos direitos humanos.


A ditadura militar e os povos indígenas


Os povos indígenas estão trazendo à tona as violações de seus direitos fundamentais à vida, a seus territórios, recursos naturais e formas diferenciadas de organização. As graves violações dos direitos humanos dos povos indígenas estão sendo debatidos, desde as aldeias, até as universidades e diversas instâncias do Estado brasileiro. E não são apenas memória historiográfica. Antes de tudo, é a busca da verdade para fazer justiça e garantir a não repetição das crueldades contra os povos originários.

Trazer à consciência nacional “os assassinatos, chacinas, massacres, envenenamentos, prisões ilegais, torturas, violência psicológica, intimidações e ameaças, despejos violentos, atentados contra aldeias, remoções forçadas, integração e escravização, estupros, campanhas difamatórias, preconceitos, crimes que geraram (e por continuarem acontecer em escala ainda geram) traumas individuais e coletivos” (Zelic, Marcelo). Essa foi a tarefa da Comissão Nacional da Verdade, cujo relatório foi entregue à presidente Dilma, no dia 10 de dezembro passado. A rigor, foi um início de processo que deverá continuar. Pois só assim se poderá iniciar um processo de reparação e justiça para os 8.350 indígenas mortos, no período de investigação da CNV – Comissão Nacional da Verdade (pg. 159).

Apesar do pouco espaço destinado à questão indígena (58 páginas de um total de 4.400), da falta de uma estrutura e tempo que permitissem um trabalho mais abrangente, fundamentado e que se propusesse não apenas fazer emergir a verdade, mas que avançasse na perspectiva da punição dos crimes e reparação coletiva e individual, foi um ponto de partida promissor, a ser levado avante pelos povos indígenas e seus aliados. Para isso será fundamental que a Comissão Indígena da Verdade e Justiça, criada em agosto do ano passado, passe a funcionar e cobre do Estado e da sociedade total apoio para seu efetivo funcionamento.


Os crimes da ditadura e a impunidade


Um dos aspectos que chama atenção no caso da ditadura no Brasil é a forma de anistia que foi negociada e sua interpretação que resultou na total impunidade daqueles que atuaram contra as centenas de desaparecidos e assassinados e torturados pelo regime militar e milhares de indígenas mortos.
No Chile, Uruguai e Argentina houve também a lei da anistia, mas com a pressão dos movimentos sociais se conseguiu vislumbrar brechas que levaram à punição de governantes e responsáveis pelas truculências, mortes e desaparecidos.

No Brasil não se chegou à condenação dos responsáveis pelas mortes e desaparecimentos. Na questão indígena se chegou a raras compensações individuais e coletivas pelo esbulho de alguns territórios indígenas, como no caso dos Panará, dos Gaviões do Pará e mais recentemente a Comissão da Anistia do Ministério da Justiça, pediu desculpas em nome do Estado brasileiro e indenizou membros dos Kewara – Suruí, do Pará. Tudo isso, porém, representa uma ínfima parte de todas as atrocidades cometidas contra esses povos.


Para além do papel


Conforme Zelic são mais de 600 mil páginas disponíveis com informações sobre os povos indígenas e violação de seus direitos. Dentre eles destacamos o Relatório Figueiredo, de 1967, em que são 7.700 páginas contendo denúncias de graves violações dos direitos dos povos indígenas. Além disso, urge que se faça o registro da memória oral das testemunhas vivas de inúmeras violações dos direitos humanos dos povos indígenas – massacres, chacinas e ações de extermínio-genocídio de populações indígenas em todo o país. Uma tarefa gigantesca para uma dívida histórica da nação brasileira para com os primeiros habitantes desse país.

Destacamos ainda as recomendações feitas no relatório da comissão que tratou da questão indígena. A questão mais importante é a demarcação, desintrusão e garantia das terras/territórios dos povos indígenas. E junto com essa ação de reparação coletiva vem a necessária recuperação ambiental das áreas degradadas. Só assim o pedido de desculpas poderá ser sincero e consequente por parte do Estado brasileiro. Juntamente com essas ações será fundamental uma campanha permanente de informação sobre a realidade, vida e luta dos povos indígenas, que passe principalmente pelo processo formativo em todos os níveis escolares. Para alimentar essa rede de informação será importante a criação de uma Comissão Indígena da Verdade e Justiça, que aprofunde a memória e busque a justiça. Uma Comissão da Verdade exclusiva da questão indígena.
Egon Heck
Cimi Secretariado

Brasília, 6 de abril, 201 - Abril Indígena - mobilização nacional e regionais

quinta-feira, 26 de março de 2015

Como o Estado brasileiro (mal) trata os povos indígenas


Spray de pimenta contra o maracá

Uma delegação dos povos indígenas da Bahia acabou de fazer uma maratona por órgãos e instituições do Estado brasileiro, em Brasília. É importante avaliar alguns aspectos e comportamentos da recepção nos diversos espaços do poder.

Índios em Brasília, caso de polícia?

A impressão que se tem, olhando o comportamento de integrantes de instituições do Estado brasileiro, é a de que os povos indígenas devem (são)ser tratados como baderneiros, agitadores, violadores da ordem ou bandidos. Assim foram tratadas as diversas lideranças ao buscarem seus direitos, exercendo sua cidadania, exigindo o cumprimento da Constituição.

Vejamos algumas situações que corroboram a impressão dos povos indígenas.
Em ritual ao lado da Biblioteca Nacional:
Subitamente entram numa das vias do Eixo Monumental, cantando ao som do maracá, se dirigindo à Praça dos Três Poderes. Movimentação de policiais. Não demora e vão pra cima dos indígenas. Um deles se agita, grita e joga spray de pimenta em algumas lideranças... Essa parece ter sido a forma de diálogo usada com os povos indígenas que vem pacificamente reivindicar seus direitos.

Ao chegarem a Brasília e descerem dos ônibus já são avisados: “Deixem as flechas e as bordunas aqui no ônibus, pois não vão deixar entrar. Ah, deixem também os maracás”. Ao que uma liderança reage: “Assim já é demais. Daqui a pouco vão pedir para deixarmos os colares, os cocares, os cantos... Não vamos desistir dos maracás”. E trouxeram para o centro do poder. Porém, na portaria do Anexo 2 da Câmara dos Deputados, um dos seguranças exigiu que deixassem os maracás na portaria, alegando que poderiam ser usado como arma. Santa ignorância, ou melhor, fiéis cumpridores de inusitada repressão.
Uma delegação foi ao Ministério da Educação, tratar de questões pertinentes a esse ministério. Foram barrados na portaria. Motivo alegado: “Vocês estão sem camisa”. Detalhe: estavam com belíssimos colares e pinturas no corpo. Foi o dia em que o ministro caiu. Conforme Kahu, somente depois de 40 minutos chegou um  indígena técnico da Comissão de Educação Escolar e conseguiram adentrar o prédio, depois de muita discursão e argumentação.

No Ministério de Desenvolvimento Agrário, a delegação que para lá se dirigiu também enfrentou dificuldades para entrar. Quando as lideranças indígenas chegam, especialmente próximo a prédios como o da Câmara dos Deputados, são recebidos e interpelados por policiais e/ou seguranças.
Já passou da hora de explicitar aos detentores do poder e funcionários de todos os escalões, de que estão lidando com lideranças e que as recepções devem ser conforme determina a Constituição, que garante a esses povos o respeito à sua maneira de ser. E mais, está se tratando como chefes de povos e como tal, neste nível de igual para igual deve se dar o diálogo e o respeito.

Todas essas experiências desastrosas e humilhantes só confirmam o grau de discriminação, desinformação e preconceito como sempre foram e continuam sendo tratados os povos indígenas em nosso país. Essas seriam razões suficientes para que representantes da sociedade dominante ao se dirigirem às aldeias indígenas fossem mal recebidas ou até impedidas de entrar na comunidade. Mas o que se percebe é que apesar de toda essa violência sistêmica e as formas de maus tratos, os povos indígenas, em quase todos os casos recebem da melhor maneira possível os visitantes. É lamentável que isso não aconteça mutuamente.

Egon Heck

Secretariado Nacional do Cimi

Brasília, 26 de março de 2015

Iasi: missionário radical e profeta





Ao  referir-se  ao Cimi, Dom Pedro Casaldáliga, dizia que essas quatro letrinhas, incomodaram e desafiaram muita gente do poder e da dominação. Plagiando nosso  poeta e profeta,  diria que as quatro letrinhas de IASI também  enfrentaram muitos poderosos que se opunham à vida e direito dos povos indígenas, especialmente na década de 70. Foi um incansável guerreiro da causa indígena. Sua obsessão pelos desafios maiores, lhe causaram muitas ameaças e inimigos. Dentre suas maiores batalhas estão as lutas pelas terras/territórios indígenas. 
Denunciou com veemência os usurpadores e invasores.  Não tinha medo de enfrentar a ditadura militar e seus prepostos. Quando necessário desafiou os militares a o prenderem,  mas não abria mão um centímetro quando se tratava do direito de povos indígenas às suas terras.

Procurando salvar vidas e culturas

Iasi está na raiz do indigenismo missionário comprometido e respeitoso que se consolidou na criação do Cimi. Enfrentou situações difíceis, como no contato com os Tapayúna (Beiço de Pau) com os quais fez contato para salvar esse povo do extermínio a que foi submetido ao contado  indiscriminado com as frentes extrativistas, de expansão agropecuária e colonização. Eram aproximadamente 1.200 índios “dizimados por envenenamento, armas de fogo, gripe e remoções forçadas, restaram cerca de 40 indivíduos ( Relatório Comissão Nacional da Verdade, pg 221). Iasi falava com muita emoção e revolta, de suas tentativas de evitar esse genocídio.

Denunciou energicamente a ditadura militar pela ação perversa do governo em  desviar o traçado da BR 364 passando no meio do território Nambikwara, e disponibilizando suas terras aos latifundiários. Aliás, conforme as constatações da época, o estado do Mato Grosso, já estava titulando terras até um terceiro andar. E nessas ações vergonhosas estava envolvida a Funai que concedia certidões negativas aos  às empresas de colonização e agronegócio.

Iasi foi batalhador incansável das situações mais graves que envolviam as vidas, territórios e saque de recursos naturais das terras indígenas.  Marcou presença principalmente na região amazônica que na década de 70 foi submetida a extrema violência pelos projetos ligados ao Plano de Integração Nacional – PIN. As principais vítimas foram os povos indígenas ( vide- Vítimas do Milagre, de Shelton Davis).
Por ocasião da Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI do Índio, em 1977, Iasi percorreu o país para fundamentar seu depoimento denunciando  o genocídio que grassava em quase todas as regiões do Brasil. Segundo avaliações do período o depoimento do Iasi nesta CPI foi o mais contundente e documentado, com  denúncias concretas de inúmeras situações de violência em função das invasões dos territórios indígenas, saque dos recursos naturais, emissão de certidões negativas e omissão criminosa de demarcação e proteção das terras indígenas por parte do Estado brasileiro.


Iasi missionário radical e testemunho de fé

Em maio de 1987, ao visitar os missionários no Mato Grasso, encontramos o Irmão Vicente Cañas, assassinado há uns 40 dias. Fomos imediatamente comunicar o fato ao Iasi, em sua humilde casinha no Barranco Vermelho, junto aos Rikbatsa. Comunicamos o fato aos jesuítas em Cuiabá e subimos para o barraco do Vicente. Emocionado, Iasi ajudou a envolver os restos mortais em saco plástico, prevendo a necessidade de investigações que esclarecessem  o brutal assassinado de seu colega, o martírio de Vicente.

Iasi esteve com outros colegas jesuítas como Egydio, Tomas, Balduino e Vicente, na  origem de profundas mudanças na Missão Anchieta – MIA.  Igualmente foi  de fundamental importância a sua contribuição na caminhada do Cimi, do qual foi secretário executivo, escolhido pelo então Conselho da entidade, dia 22 de julho de 1975 (Ver Boletim do Cimi nº 22 de julho/agosto de 1975). Algum tempo depois pediu ao Egydio, que era assessor, que reassumisse o secretariado, pois ele preferia ficar livre para missões mais difíceis, envolvendo principalmente a luta pela terra.

No dia mundial da água, Iasi sentou sereno em sua canoa e deixou-a seguir para a eternidade. Foram 95 anos intensos de dedicação à causa indígena e da vida. Seu testemunho e lembrança continuem a alimentar nosso compromisso com a causa dos povos indígenas

Cimi Secretariado
Brasilia 22 de março de 2015
(EH)