ATL 2017

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quinta-feira, 28 de maio de 2015

Kaingang em Brasília: entre trancos e barrancos

Sentados sobre tocos de madeira, sob a sombra de um centenário pinheiro (pinus araucária), lideranças Kaingang, vão desfilando suas dores seculares e traçando as estratégias de luta pela terra, pela vida, pelas florestas e o meio ambiente.  Vão aquecendo seus corpos e corações nas chamas das grimpas, nas quais estão assando os deliciosos pinhões. Não falta a rodada do chimarrão que ajuda a aquecer as ideias e a indignação. Cenas comuns em meados do século passado.

Hoje, em Brasília, rodando pelos espaços dos Três Poderes, os guerreiros Kaingang do Rio Grande do Sul, sentem a aridez, não apenas do clima, mas dos corações endurecidos pela ânsia do poder e dos privilégios.  Os “brancos” que invadiram suas terras, derrubaram as florestas, poluíram os rios e rasgaram o ventre da mãe terra e de seus filhos, vociferam contra os índios acusando-os de terem terra demais, e que são indignos de continuar em cima das terras produtivas cobiçadas pelo agronegócio.




Revoltados, trilham os caminhos do diálogo, da escuta paciente, das falas iradas, da sensibilização e da conquista de solidariedade e alianças. Não é fácil. Como habitantes originários dessas terras brasis, sentem a dor sufocante da secular dominação, do desprezo e racismo, da invasão permanente de seus territórios, da sua cultura e autonomia.

Memória como arma

O povo Kaingang, é um dos povos do tronco linguístico Jê, guerreiros que ocupavam vastos territórios desse Brasil sul e central, que opuseram enérgica resistência à invasão de suas terras, recursos naturais, cultura e alma. Ainda hoje os povos desse tronco linguístico – como os Xavante, Xerente, Krahô, Kayapó dentre outros
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Com o avanço das frentes de ocupação e colonização, principalmente por alemães, italianos e poloneses, a partir do século 19, os Kaingang foram sendo empurrados para pequenas extensões de terra, verdadeiros confinamentos. Mesmo essas terras Kaingang demarcadas, foram sendo alvos de sucessivos esbulhos, principalmente a partir de meados do século 20.
A situação de invasão dessas reservas indígenas chegou a uma situação dramática na década de 1970, quando áreas como Nonoai estavam ocupadas por dez mil colonos e um mil indígenas Kaingang e uns poucos Guarani. O mesmo fenômeno se deu em praticamente todas as reservas indígenas do sul do país.  As invasões massivas eram estimuladas especialmente por governantes e políticos na certeza de que essas terras seriam tiradas dos índios e repartidas entre os colonos, fazendeiros e latifundiários.

O grito de revolta e libertação

“Ou nós morremos embaixo dos pés dos invasores, ou colocamos esses intrusos pra fora das nossas terras”. Essa foi a decisão tomada pelos Kaingang na década de 1970. De um conflito dos Guarani com invasores da terra indígena de Guarapuava-PR, em dezembro de 1977, foi a faísca que faltava para deflagrar o movimento de desintrusão das terras indígenas do sul do Brasil. A ação estratégica e guerreira de Nonoai foi emblemática.  Queimando seis escolas de brancos numa mesma noite, praticamente inviabilizaram a resistência dos invasores. O movimento de desintrusão se alastrou como fogo na restinga, em todas as reservas indígenas do Sul do Brasil. Milhares de famílias de não indígenas foram retiradas das áreas como um verdadeiro movimento de retomada das terras e libertação do aguilhão opressor.

Agora os Kaingang do Rio Grande do Sul, estão reorganizando o grito de revolta e luta para garantir seus direitos, especialmente suas terras. Dezenas de acampamentos indígenas clamam por providências urgentes. Diante da inércia e irredutibilidade dos Três Poderes, aos Kaingang resta o retorno às suas terras e a autodemarcação.

Fechando a rodovia em frente ao Palácio do Planalto, conseguiram marcar um encontro com o ministro-Geral da Presidência da República e outros representantes de ministérios. Infelizmente nada de mais concreto poderão levar para suas terras.  As ameaças a seus direitos continuam nos Três Poderes. Porém, a presença é uma forma de dizer em alto e bom tom, “não passarão sobre nossos direitos, a não ser passando sobre nossos cadáveres”.

A presença em Brasília, nessa semana, foi uma vitória importante da mobilização indígena nacional. Foi dada continuidade ao processo de resistência e luta definido pelo movimento indígena. Estiveram nas ruas, nas praças, nos ministérios, no Palácio do Planalto, na Câmara dos Deputados e no Senado, e também no Supremo Tribunal Federal. Pintaram seus corpos com os símbolos das metades Kaimé e Kainrukre, levaram flechas e bordunas, nessa guerra sem trégua, pelos seus direitos. Escreveram cartas, protocolaram documentos, exigiram respeito aos seus direitos e o cumprimento da Constituição e legislação internacional.

Apoiaram a iniciativa dos senadores que conseguiram 42 assinaturas (mais da metade) contra a PEC 215: “A confirmação de direitos de minorias não pode ficar suscetível a maiorias temporárias. A demarcação é um ato técnico e declaratório. É incabível trazer essa matéria para o âmbito do Congresso, um equívoco jurídico e politico, um atentado aos direitos dos povos indígenas”.
Entre trancos e barrancos, barreiras e policiais, burocracias e meias verdades, maldades incrustrados no poder adverso, seguirão lutando, com a força guerreira e a proteção de Topen. Seguirão preocupados para suas aldeias, mas com a certeza de mais um passo importante na conquista de seus direitos a um chão, no Rio Grande do Sul.

Egon Heck
Cimi Secretariado Nacional

Brasília, 27 de maio de 2015.

sábado, 23 de maio de 2015

Eternamente interinos?


“Declare-se interino o presidente da Funai e se preciso for  o mesmo se repita  nas várias instâncias do órgão...assim estaremos acorrentando um incômodo órgão, cuja missão contraditória, é defender os índios  desde que não atrapalhem os interesses maiores que se encastelaram no Estadobrasileiro...” Um pesadelo. Uma realidade. O começo do fim? 

Num olhar de soslaio para mais de meio século de Funai, certamente poderíamos escrever alguns livros retratando uma trajetória marcada por mil e uma peripécias, nessa sua nobre missão de defender os povos indígenas e seus direitos, garantindo a proteção de suas vidas, sua cultura, seus territórios e bens materiais e imateriais.

Poderíamos começar pelo primeiro dia da Fundação Nacional do Índio. Antes só existiam os escombros do carcomido Serviço de Proteção aos Índios (SPI), que havia se transformado no maior antro de corrupção e violência da história desse país. A nascente Funai herdou de seu antecessor em torno de 700 funcionários. Destes, no dizer do procurador Jader de Figueiredo, que presidiu a comissão de sindicância do SPI em 1967, talvez uns 10 não estariam incluídos na lista de irregularidades em sua atuação. Naquele primeiro dia, as intensões eram louváveis. Se constituiu um conselho que seria o responsável pela atuação do órgão. As mãos estariam limpas. Mas o jogo de interesses antiindígenas não mudou e não permitiu com que ações efetivamente de proteção aos direitos dos povos indígenas fossem colocadas em prática pelo então governo da ditadura militar. Restou então ao coordenador do Conselho, o jornalista Queiroz Campos, transformar-se no primeiro presidente da Funai.

Mais de meio século depois, outros 35 presidentes do órgão iriam capitanear o sucateamento da instituição, até transformá-la num esquálido ente com a missão permanente de ser e não ser a executora de deploráveis políticas antiindígenas, ou a falta das mesmas. Na melhor das hipóteses, tímidos bocejos de defesa dos direitos indígenas.
Nos caminhos e descaminhos do órgão indigenista do governo passaram generais, capitães e coronéis, bem como padrinhos e apadrinhados políticos como Romero Jucá.

Nesse breve história, teve de tudo. Presidente da Funai que foi derrubado pelos índios antes mesmo de assumir, outro teve apenas um dia de presidência. Juruna e os Xavantes tiveram uma incidência marcante sobre a direção do órgão.  Os militares impuseram seu bastão e suas armas a serviço do controle dos índios, seus territórios e saque dos recursos naturais. Apadrinhados políticos houve vários. Alguns chegaram a afirmar que para ser presidente da Funai não precisava entender de índios, mas somente de administração. Teve os arautos de novas políticas indigenistas, que morreram na praia com toda sua boa vontade. Entidades indigenistas tentaram dar novos rumos ao órgão, em vão! Alguns arautos de boa vontade chegaram a fazer exigências, nobres e urgentes, para assumir a presidência do órgão.

A última estratégia deste festival de incongruências está sendo o da eterna interinidade, sinalizando que os direitos indígenas também sejam interinos. Mas essa cilada não passará incólume. A delegação dos povos indígenas do Mato Grosso do Sul, cobrou do ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Miguel Rosseto, uma resposta urgente sobre a efetivação do atual interino na presidência do órgão. “Exigimos do Poder Executivo respeito ao órgão indigenista, a Funai, consolidando o hoje presidente interino, pois é um cargo que demanda habilidade técnica e não política”. Porém, deixaram claro que é preciso mudar a relação do Estado brasileiro com os povos indígenas, e não simplesmente a efetivação de alguém na presidência da Funai.

Apesar de não terem nenhuma ilusão de que isso irá mudar substancialmente as políticas efetivas do órgão, acreditam que assim poderá ter um pouco de oxigênio na defesa dos direitos dos povos indígenas na atualidade.

Pelo fim da Funai

Ruralistas, membros da Comissão Especial da PEC 215, um tanto constrangidos com a presença de indígenas do Mato Grosso do Sul, não contiveram sua sanha contra esses povos  apontando sua artilharia pesada e fúria contra a Funai. “Se é para acabar com a Funai assino embaixo. Ela está com seu prazo de validade vencido”.  E perguntavam com malícia e ironia: “Onde a Funai quer chegar? Dizem que os índios já ocupam 12% do território brasileiro e a Funai com as terras indígenas desse tamanho quer chegar a 22%?” E passaram a desfilar números enganosos e inverídicos numa clara intenção de reforçar seus pelotões antiindígenas. 
Não é novidade o pedido de extinção da Funai, que a rigor é um desejo de extinção dos índios. Isso aconteceu diversas vezes nas últimas décadas. Diversas comissões parlamentares de inquérito foram criadas ou propostas: CPI do Índio ou CPI da Funai, CPI contra o Cimi, CPI da Amazônia. Todas com objetivo claro de impedir que os direitos constitucionais dos povos indígenas fossem respeitados.

Em vários momentos, diante das acusações e arroubos conta os direitos indígenas, a plateia manifestou sua repulsa e indignação gritando: “Nos respeitem... Não falem mentiras... Chega de enganação”.

A sessão pela demarcação das terras indígenas, solicitada e coordenada pela deputada Janete Capiberibe, teve a grande maioria das intervenções favoráveis aos indígenas e seus direitos. Vale destacar a exposição de Marcelo Zelic que pontuou a ação desastrosa das políticas do Estado brasileiro com relação dos povos indígenas, conclamando para uma efetiva reparação aos povos nativos, o mínimo a ser feito para começar uma pagar a dívida histórica.

Além da urgente demarcação das terras indígenas, foi também pedido o “fim da interinidade falaciosa” que tem sido imposta aos últimos presidentes da Funai.

A maratona contra a PEC 215 e todas as iniciativas dos Três Poderes visando tirar ou limitar os direitos indígenas, continuam. Muita reza e o fim da paciência e da impunidade: “Reforçamos que não aceitaremos estes ataques, denunciamos que as ações neste sentido são inconstitucionais e criminosas. Aqui estamos, resistiremos e dizemos que se o Governo e Estado Brasileiro seguir com estes desmontes não nos restará alternativa se não retomarmos nossos territórios e buscar a justiça que nos cabe com as nossas próprias mãos. Nós, povos do Mato Grosso do Sul, estamos unidos neste sentido com todos os povos do Brasil para parar estes projetos de morte ou morrer pela vida de nosso povo” (Moção dos Povos Indígenas do Mato Grosso do Sul l à sociedade e Estado brasileira).

Egon Heck
Cimi – Secretariado Nacional
Brasília 20 de maio de 2015 


Indios dizem não à “mesa de negociação”




A delegação de 53 lideranças indígenas do Mato Grosso do Sul tiveram nessa quarta-feira (20) um encontro com o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Esperavam respostas concretas com relação à assinatura das 12 portarias declaratórias que estão sob sua mesa.  Queriam também saber o porquê da paralisação total dos procedimentos de regularização das terras indígenas. Além disso, queriam saber quais são as iniciativas para dar segurança às comunidades e suas lideranças, que estão sendo diariamente ameaçados de morte. Grassa na região total impunidade em que matadores de índios viram heróis. Pediram também que o atual presidente interino da Fundação Nacional do Índio (Funai) seja efetivado no cargo.

O ministro Cardozo, escutado atrás das falaciosas “mesas de diálogo”, repetiu em exaustão que o clima não está bom, e que não vê nenhuma ação viável a não ser essas mesas, que os índios qualificam como enganação: “ Para nós a vida é um sonho rápido que fica em algum lugar entre a fome e a bala do fazendeiro. Até quando, senhor ministro? Quando na história deste país tivemos uma “conjuntura” favorável a nós? Tudo que temos são nosso direitos, e exigimos seu cumprimento”, insistiram as lideranças em documento entregue ao Ministério da Justiça na manhã desta quinta-feira (21).

Mensalão do diálogo

As aludidas mesas de diálogo são, pelos povos indígenas, comparados às mesadas dos invasores, ou a um mensalão de lucros fáceis e abundantes, com a exploração das terras e recursos naturais das terras indígenas há décadas. “Os latifundiários e os poderosos, senhor ministro, não querem diálogo, mas a nossa morte. Basta lembrar os inúmeros massacres e extermínio de nossos povos, caracterizando um genocídio e holocausto dos povos nativos e originários deste continente e do nosso país”.
Estarrecidos e indignados, os povos indígenas do Mato Grosso do Sul afirmam na carta: “Ao descumprir com suas obrigações e com as atribuições do órgão que representa, negando-se a dar continuidade aos procedimentos demarcatórios, o senhor não nos deixa outra escolha se não partirmos para a retomada de nossos territórios, questão que tentamos impedir deixando nossas famílias e nossos afazeres e vindo até Brasília buscar o diálogo com o senhor”.



Retornaremos


Em tom indignado, a liderança do Ypoy desabafou dizendo ao ministro que talvez não volte, pois poderá ter sido assassinado, mas virão outros lutadores, até que a terra seja demarcada. Na carta ao ministro reiteram: “Até lá saibam que não aceitaremos as mesas de diálogo, não seremos enganados de novo. Desta nossa reunião não ficamos com nada se não a certeza de que para nós não existe a possibilidade no momento de termos respeitados nossos direitos previstos na Constituição Federal de 1988. Infelizmente é isso que temos para levar a nosso povo em nosso retorno”.
Ao final das duas horas de exposição da dramática situação dos povos, aldeias e acampamentos indígenas no estado, campeão de violência contra os povos indígenas, e da irredutibilidade do ministro da Justiça de fazer avançar os processos de demarcação das terras e outras providências, o encontro terminou em mais uma frustração: “É uma pena que sintamos que em nome das “mesas de diálogo” a possibilidade de diálogo com o Executivo está acabando, senhor ministro, e como dissemos para o senhor, a inércia nas demarcações só

os deixam uma escolha, retomar nossas terras por meio da única força que temos. Se isso acontecer morreremos.”

Na carta protocolada nesta manhã no Ministério da Justiça, os índios manifestam sua revolta, mas acreditam nas forças de seus guerreiros e ancestrais, para continuarem a luta até a vitória final.

Egon Heck
Secretariado nacional do Cimi
Brasília, 22 de maio de 2015


segunda-feira, 18 de maio de 2015

Kaiowá Guarani e Terena: lutar vale à pena

Deixaram seus tekohá, aldeias e acampamentos no Mato Grosso do Sul e vieram a Brasília cobrar dos responsáveis pelos Três Poderes o respeito às suas vidas, seus territórios e todos os seus direitos. Assim como estiveram na ONU, há poucos dias, cobrando do Estado brasileiro a efetivação dos direitos constitucionais e internacionais, estão agora em Brasília, de cabeça erguida e a força de seus guerreiros e líderes espirituais para reafirmar que jamais abdicarão de seus tekohá (territórios tradicionais), onde possam viver conforme sua cultura e seu teko (jeito de ser e viver).

Estarão denunciado as violências e os crimes que estão sofrendo pelas mãos de pistoleiros, fazendeiros, usineiros usurpadores e invasores de suas terras. Estarão demonstrando sua indignação pelas balas que os pistoleiros os feriram no corpo e na alma, na total impunidade, omissão e conivência do Estado brasileiro.  Mais uma reintegração de posse ameaça e decreta a morte dos Kaiowá Guarani do Apikay.

Estarão cobrando do governo a imediata retomada da regularização de todas as terras Kaiowá Guarani, conforme o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), assinado em 2007. Sete anos já se passaram e o ministro da Justiça ainda não assinou as portarias declaratórias das mais de 40 terras indígenas previstas no TAC.  Diante desse quadro desastroso, perguntam: quantas vidas e sangue derramado ainda serão necessários para cumprir a Constituição? Será que, na prática, os governantes e autoridades são adeptos da política de “índio bom é índio morto”? 
Do Ypoy  dirão, em alto e bom tom, que jamais sairão de seu tekohá. Perguntarão aos ministros do Supremo Tribunal Federal, as razões das decisões contra as terras indígenas de Guyraroká, Arroio Korá e Limão Verde, dentre outras.

Estarão dando continuidade às lutas e mobilizações dos povos indígenas de todo o país, que avaliam estarem sendo submetidos às maiores injustiças e violências da história desse país. Estarão se unindo aos Tupinambá, da Bahia, aos Kaapor, do Maranhão, aos Munduruku, do Pará, aos povos atingidos pela hidrelétrica de Belo Monte, pela transposição do rio São Francisco e invadidas e impactadas por centenas de grandes projetos do modelo de desenvolvimento brasileiro.
Estarão cobrando do Congresso Nacional o fim de todos os projetos que tentam suprimir os direitos indígenas, em especial a PEC 2015, os PLs 1216 e 1016, e tantos outros decretos de morte aos povos nativos.

Dirão à presidente Dilma, que a total paralisação da regularização das terras indígenas é uma atitude que depõem frontalmente contra as propaladas afirmações de que somos um país que respeita os direitos humanos e étnicos de seus habitantes.  O Mato Grosso do Sul é o Estado em que o número de suicídios entre o Kaiowá Guarani é superior a 50 por ano. O mesmo acontece com os assassinatos. Mais da metade dos índios assassinados, por violências externas e internas, é de Kaiowá Guarani. É o momento de união e solidariedade com esses povos.

Será uma semana de muita reza, muita conversa e pressão, para cobrar seus direitos e não deixar rasgar a Constituição Federal.

Egon Heck
Cimi Secretariado Nacional
Brasília, 18 de maio 2015




terça-feira, 5 de maio de 2015

Lutar não foi em vão




Linda celebração. Comovente. A catedral repleta de gente se juntando em hinos de gratidão e louvor a Deus pelo testemunho do profeta Dom Tomás Balduíno. Um ano transcorreu desde sua partida para a morada do Pai, onde com  todos os povos vamos um dia nos encontrar. Luar lindo. Cheia, a lua veio se juntar ao coro das gentes e da natureza num grande momento da memória perigosa de um guerreiro destemido.

Dom Eugênio, bispo da Diocese de Goiás, expressou sua admiração pelo profeta Tomás, reafirmando que a melhor maneira de fazermos a memória e honrar essa bonita e radical obra de um homem de fé, é dar continuidade às suas obras e sonhos, na luta pela terra e pelos que a amam e respeitam, como os povos indígenas, as populações tradicionais, os sem terra e todos os expulsos da terra. Manifestou o compromisso assumido pela Diocese de Goiás de dar continuidade à luta de Dom Tomás no apoio incondicional aos povos indígenas na luta por seus direitos, especialmente a terra/território.
Canutto, em nome da CPT Nacional, lembrou que a Comissão Pastoral da Terra, tem se sentido um tanto órfã, com a morte de Dom Tomás. Mas que ao contrário de sentir-se inibida em sua missão de luta pela terra, reforma agrária e justiça no campo,  tem a certeza que essa luta está se fortalecendo, agora com a intercessão de Dom Tomás.
Em nome do Cimi destaquei a importância da celebração dessa memória perigosa do profeta Tomás. Em contribuição com essa memória, relatei fato ocorrido em 11 de janeiro de 1977. Naquela ocasião, se realizava na missão Surumu, em Roraima, uma das primeiras assembleias de tuxauas (caciques) e lideranças indígenas daquele território federal. No reinício dos trabalhos da tarde, uma surpresa. Dois representantes da Funai e da polícia, dirigiram-se à assembleia exigindo a retirada de Dom Tomás, presidente do Cimi, do recinto. Caso contrário o encontro seria dissolvido. Era ordem do general Ismarth de Araújo, presidente da Funai. Após o impacto da ameaça, o presidente do Cimi se levantou e exclamou: “Daqui só saio preso”!
Instantes de perplexidade. Os índios confabularam entre si, decidindo pela retirada de todos do local. Eles foram concluir sua assembleia em outro local. Só assim Dom Tomás e Egydio se retiraram.
Um representante dos acampamentos e assentamentos da região ressaltou a insistência de Dom Tomás de que a Igreja deveria estar junto do povo e com ele fazer a caminhada de libertação. E como fruto dessa opção, foram se criando os grupos de vivência do Evangelho e as Comunidades Eclesiais de Base. Relatou também momentos impressionantes em que se manifestou profundamente a fé e luta de Dom Tomás.
No final da emocionante celebração, ecoaram canções que expressam a Igreja peregrina, para a qual lutar não foi em vão.  Ao contrário aí estão os testemunhos de uma Igreja que caminha com o povo em suas lutas por direitos, justiça e libertação. Foi também entoada uma canção feita em memória do lutador que estava sendo lembrado, de maneira especial dentro do grande número de mártires e profetas da atualidade: “Um silêncio que se faz, cai a tarde, bate o sino, segue em frente, vai em paz, para sempre, Balduíno”.

Urubu-ka’apor em pé de guerra

Essa é a manchete que se podia ver na imprensa em agosto do ano 2.000 (Folha do Paraná, 24/08/2000) seguido da explicitação “Índios vão aos EUA denunciar invasão de áreas”. Na matéria, três caciques da nação urubu-ka’apor relatam os objetivos da viagem “vão denunciar no Museu do Índio Americano e na Organização das Nações Unidas-ONU, em Nova York, a invasão de suas terras por fazendeiros e madeireiros e o descaso das autoridades brasileiras quando à demarcação de suas terras... A cada dia aumenta o número de invasores para roubar madeira... é a nossa última tentativa de chamar atenção da opinião pública brasileira e estrangeira para os problemas que estamos enfrentando... desde 1991 existe uma liminar de reintegração de posse concedida pela Justiça Federal do Maranhão em favor dos índios. Essa liminar já foi revalidada cinco vezes, mas não cumprida” (idem).
Quinze anos depois. Uma delegação de indígenas brasileiros e aliados denunciam na ONU o assassinato de Euzébio ka’apor em função de sua luta contra o esbulho da madeira pelos madeireiros invasores. O secretário do Cimi, em sua fala no Fórum Permanente da Questão Indígena, na ONU, manifesta a indignação dos povos indígena do Brasil, por mais essa violência e crueldade. Pede que o governo faça uma rigorosa investigação e punição dos responsáveis pelo crime.  Além disso, salienta que a única forma de evitar com que esse tipo de violência continue, é a imediata retomada da demarcação das terras indígenas por parte do governo.
Egon Heck
Cimi-Secretariado
Brasília, 5 de maio de 2015





segunda-feira, 27 de abril de 2015

Da aldeia à ONU – e agora Brasil?

“Tamanhos são os crimes que o Serviço de Proteção aos Índios degenerou a ponto de persegui-los até ao extermínio. Pode ser considerado o maior escândalo administrativo do Brasil” (Jader Figueiredo-1968).

Lindomar Terena leu o documento dos povos indígenas do Brasil
Ainda sob o impacto das manifestações, denúncias e cobranças do 11º Acampamento Terra Livre e das Mobilizações do Abril Indígena de 2015, mais um fato de extrema relevância para os povos indígenas acaba de se concretizar. Um momento de incidência internacional acaba de acontecer, quando lideranças indígenas da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) deixaram suas aldeias e foram ao espaço de diálogo das nações, a sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York.

Ali denunciaram aquilo que protocolaram nos três poderes em Brasília uma semana antes. Um documento foi lido por Lindomar Terena, do Mato Grosso do Sul, terminando com sugestões para os membros da ONU.

Embaixo do tapete não cabe mais

É longa a história de ocultação da verdade por parte do Estado brasileiro , com relação à trágica realidade  a que estão submetidos os povos indígenas. É o famoso jeitinho de jogar a “sujeira debaixo do tapete”. Ficaram famosos os intuitos da ditadura militar, de ocultar os processos de violência e genocídio contra os povos originários, sob o manto e discurso de um “progresso” irreversível.  Eram tempos de milagre. O milagre da sobrevivência dos povos, diante da fúria das empreiteiras da ditadura.

Porém, a irrupção de denúncias escabrosas e generalizadas de violência e genocídio dos povos indígenas no Brasil, maculou a ilibada imagem do país, diante do capital internacional a procura dos melhores e mais lucrativos lugares do mundo. A reação não se fez esperar. O governo da ditadura militar chamou organismos internacionais para vir comprovar a falsidade das acusações. Pelo menos três organismos internacionais, dentre os quais a Cruz Vermelha Internacional e a Survival Internacional, estiveram no Brasil no início da década de 1970. O senhor Robin Hambury-Tenison, depois de nove semanas de contatos com inúmeras realidades indígenas, afirmou “que sem ajuda técnica e econômica internacional os 50 mil índios brasileiros desaparecerão em dois anos” (Jornal do Brasil, 08/07/1971). Referente a essa afirmação o diretor do Departamento Geral de Estudos e Pesquisas da Funai, Paulo Monteiro Santos, lamenta que tenha sido feito esse enorme custo pois com esse dinheiro poderiam ter sido instalados dois ou três postos indígenas.  Apesar desse alerta subvencionado o sr. Tenison afirmou que não existia genocídio.

Poucos anos depois, no IV Tribunal Internacional Russel, em Roterdã, na Holanda, o Brasil foi condenado pelo crime de genocídio. Foram denunciadas as situações dos povos Waimiri Atroari, Yanomami, Nambikuara e dos Kaingang, de Mangueirinha, no Paraná (Jornal Porantim, novembro 1980).

Na ONU: anúncios e denúncias

Como parte da mobilização dos povos indígenas por seus direitos e dignidade, uma delegação de representantes indígenas da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), levou ao Fórum Permanente para Questões Indígenas da Organização das Nações Unidas (ONU), no dia 24, em Nova York (EUA), a realidade das comunidades país afora.


Há menos de um ano, a violação aos direitos indígenas havia sido denunciada neste mesmo Fórum. Infelizmente quase nada mudou neste ano, e se mudou em alguns aspectos, como o intento de supressão de direitos indígenas da Constituição, a mudança foi para pior. Aumentaram as ameaças e as violências. Diante dessa realidade o movimento indígena avaliou ser necessário continuar a resistência e afirmação de seus direitos em todos os níveis, da aldeia à ONU.

Os representantes do governo brasileiro tinham acabado de anunciar com ufanismo a realização dos Jogos Mundiais Indígenas previstos para se realizarem na cidade de Palmas, Tocantins, em setembro deste ano. Porém, sentiram-se constrangidos diante das denúncias, feitas poucas horas depois.
Quem sabe não seria um gesto de boa vontade, a demarcação das terras indígenas mais conflitivas em todo país, especialmente no Mato Grosso do Sul, na Bahia e no Rio grande do Sul, a paralização de todos os projetos anti-indígenas que tramitam no Congresso, a aprovação do Conselho Nacional de Política Indigenista e o Estatuto dos Povos indígenas conforme a proposta enviada pelo momento indígena, a exclusividade das condicionantes para a terra indígena Raposa Serra do Sol... Se isso acontecer, o Brasil poderá se dizer um digno anfitrião para os jogos indígenas. Que os jogos não sejam mais um ato para ludibriar a opinião pública nacional e internacional, diante das agressões, desrespeito e omissões do Estado brasileiro.

Como na década de 1970, foi solicitada a presença de observadores internacionais, desta vez pelo movimento indígena: “Que o Fórum Permanente envie urgentemente observadores ao Brasil para que acompanhem a realidade dos conflitos territoriais, e a ofensiva estabelecida contra os direitos indígenas nos distintos poderes do Estado”.

A razão de tal solicitação constante na carta dirigida à vice-presidente do Fórum, Ida Nicolaisen, é pela “forma que o Estado brasileiro está tratando os povos indígenas: o governo federal descumpre a Constituição, os legisladores suprimem e o Judiciário restringe cada vez mais os direitos, principalmente territoriais. Enfim, há no Brasil uma virulenta campanha de criminalização,

 deslegitimação, discriminação e racismo contra os povos indígenas, caracterizados como invasores, subverteres da ordem e principalmente como obstáculos ao desenvolvimento nacional” (Declaração dos Povos Indígenas do Brasil no Fórum Permanente dos Povos Indígenas – ONU, 24/04/2015).

Esse é um momento histórico importante para o Brasil mostrar ao mundo que tem uma decisão política de tratar com respeito e dignidade seus habitantes originários, cumprindo a Constituição e a legislação internacional.  Não tem mais espaço para defender o indefensável, ou seja, a violação das leis.

Egon Heck – fotos Laila Menezes
Cimi – Secretariado Nacional

Brasília 27 de abril de 2015

sexta-feira, 17 de abril de 2015

O poder treme – o Brasil plural e originário avança


Nesta semana Brasília foi a capital do Brasil indígena. A luta e a esperança acamparam na Esplanada dos Ministérios. Talvez pela primeira vez na história desse país, quase 200 povos indígenas deram a cor, o tom e a voz dos primeiros habitantes dessa terra, mostrando quão injusto, cruel e bárbaro está sendo o avanço dos poderosos sobre os territórios indígenas, os recursos naturais, as culturas, religiões e vidas desses povos.
No coração do poder se instalou e processa um espaço de luta, de resistência e afirmação da diversidade e dignidade dos povos primeiros. Quando as raízes se agitam, o poder treme, fecha as portas, se torna mudo e cego para os clamores que brotam do fundo da terra, do grito contido, das leis e dos direitos violados.  O Estado brasileiro teme o poder simbólico e real das lutas indígenas, porque é responsável pela constante violação dos direitos desses povos.

Vigiados e constrangidos

Desde a saída das aldeias e chegada em Brasília, as lideranças indígenas sabiam que estavam sendo vigiadas e controladas pelo serviço de inteligência e repressão do Estado. Um cenário que não lhes é estranho, pois têm sido controlados e reprimidos na luta pelos seus direitos, desde o período do Serviço de Proteção aos Índios, quando tinham seus direitos de ir e vir totalmente cerceados, proibidos de participar dos encontros e lutas de seus povos, sob o manto repressor da tutela, até as formas atuais de aliciamento e cooptação. São as formas neocoloniais de fazer prevalecer os interesses dos poderosos (latifundiários, mineradores, madeireiros, agronegócio e agroindústrias, militares, políticos...) em detrimento dos direitos indígenas assegurados na Constituição brasileira e legislação internacional.
São tolerados apenas em espaços e momentos predeterminados, controlados por forte aparato policial e mesmo assim passando por constrangimentos, como ocorreu na Câmara dos Deputados, no último dia do Acampamento Terra Livre. Foi a confirmação do que o movimento indígena já vinha alertando: de falas e papeis sobre nossa realidade, exigências e direitos os Três Poderes estão abarrotados. Se nada acontece, ou pior, retrocedem e buscam suprimir nossos direitos é porque existe um sistema perverso de negação de nossas vidas e nossa existência enquanto povos e culturas diferenciadas.

Do diálogo da enganação às lutas pela terra e direitos conquistados

 
Lideranças de todas as regiões do país foram se movimentando para Brasília. Os governantes armaram as barricadas dos seus interesses, blindados pela força das armas, sem argumentos convincentes, faziam do “diálogo de enganação” seu cavalo de Tróia. Não é de hoje que as classes dominantes fazem de conta que dizem a verdade, quando essa nada mais é do que o encobrimento de interesses e uma história falaciosa para garantir privilégios e acumular capital.
Os povos indígenas estão fartos de serem ludibriados por discursos enfeitados, mancomunados com o cinismo mordaz das elites dominantes. Tudo vil enganação. Se deixassem cair as roupas da mentira, estaríamos frente a um exército desnudo, desavergonhado.
Cientes dessa realidade os povos indígenas presentes na mobilização nacional e nas regiões deixaram claro sua decisão de lutar por seus direitos, a qualquer custo, nessa guerra que lhes é imposta diariamente. “Vamos defender nossas terras nem que seja com nossas vidas... Não podemos nos acovardar”, externou uma das lideranças.
Restam os duros caminhos do retorno às suas terras tradicionais e a autodemarcação, como forma de pressionar o governo brasileiro, diante de sua omissão e alegação de não ter recursos para resolver a situação.
No documento protocolado no Palácio do Planalto, deixaram claro à presidente Dilma que caso não resolva com urgência a demarcação das terras indígenas, “o seu governo continuará com uma visível incoerência: defender no âmbito internacional o Estado democrático e os direitos humanos, enquanto internamente se permite a perpetuação de políticas e práticas etnocidas e genocidas que há 515 anos vitimam os povos indígenas”.
Os gritos de demarcação já, contra a PEC 215 e todas as iniciativas antiindígenas continuarão a ecoar nos corações de multidões pelo país e mundo afora. As flechas, bordunas e maracás continuarão soando no espírito dos jovens guerreiros e aguerridos anciões. A espiritualidade, rituais e rezas haverão de vencer todos os muros, armas e barreiras!
Egon Heck (texto) fotos: Laila Menezes
Secretariado do Cimi
Brasília 18 de abril de 2015