ATL 2017

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sexta-feira, 28 de março de 2014

Os Povos Indígenas e o Brasil Mais de cinco séculos de ditadura


Momento de reflexão, de tomada de consciência, de transformação.
Desde o primeiro olhar distante, ao abraço desconfiado, à chegada dos deuses esperados, aos invasores chegantes, sedentos de conquistas, até hoje uma história majoritariamente pouco e mal contada.
Quem sabe quando nos vem à memória os 50 anos do golpe militar de 1964, do início de mais uma ditadura, seja um momento privilegiado de informação, compreensão, respeito e valorização dos povos originários destas terras Brasis. E mais do que isso, é preciso não apenas reconhecer o genocídio e o massacre de quase mil povos, numa média de extinção de dois povos por ano, mas fazer justiça aos 305 povos sobreviventes.
O primeiro e fundamental será reconhecer, demarcar e respeitar seus territórios.  Não há mais porque esperar. Antes que a bola role na Copa do Mundo, o mundo saberá porque ainda não se pagou essa dívida histórica aos povos indígenas e antes que a bola cruze a marca do gol,  o país sede terá que justificar porque ainda não demarcou as terras indígenas, conforme a Constituição e a legislação internacional. Não existe mais tempo para cinicamente protelar para “depois da Copa”.
Os decretos de extermínio e a resistência heroica dos povos.

As guerras declaradas aos nativos e os decretos de extermínio tiveram como consequência o holocausto de mais de cinco milhões de indígenas que viviam no atual território brasileiro. Assim nos relembrava Darcy Ribeiro.
Pouco se conhece da história desse extermínio. A história contada pelo invasor, pelo colonizador, pelas elites políticas e econômicas exalta os dominadores e assassinos de índios e omite a heroica resistência dos povos nativos.
Felizmente existem sinais de mudança. Tanto na sociedade brasileira como no movimento indígena existem iniciativas que buscam reverter esse quadro. A Comissão Nacional da Verdade e a Comissão Indígena da Verdade e Justiça são sinais, ainda tímidos e limitados, desse novo momento.
Em 1968 o grito dos indígenas sobreviventes ecoou Brasil e mundo afora, com a denúncia dos massacres e violências registradas em mais de sete mil páginas do “Relatório Figueiredo”. Essa situação começou a ser mais intensamente denunciada em diversas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs). Uma primeira em 1953, no Senado, e outra na Câmara dos Deputados, em 1963. O drama dos povos indígenas no Brasil repercutiu em todo o mundo, obrigando os governos e o Estado brasileiro a tomar decisões como a extinção do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e a criação da Funai, em 1967, e indiciar mais de uma centena de funcionários do órgão.
Porém, políticas de massacre,  violência e negação dos direitos indígenas continuam até hoje. Isso porque a rigor os povos indígenas vivem submetidos a regimes de opressão e dominação, verdadeiras ditaduras há mais de 500 anos. Prova disto é a política desenvolvimentista em curso, em conflito e desrespeito aos direitos dos povos indígenas, especialmente seus territórios.
Em 1973, o documento Y Juca Pirama-“O índio: aquele que deve morrer” foi um novo grito de socorro e denúncia sobre o genocídio em curso. Bispos e missionários denunciaram as atrocidades a que continuavam sendo submetidos os povos indígenas e conclamavam a sociedade a se unir a esses povos para evitar seu extermínio. Os bispos e missionários, articulados no recém-criado Conselho Indigenista missionário –Cimi - ,assumiam radicalmente a causa indígena, contra a política indigenista da ditadura militar.
Naquele mesmo ano foi aprovado pelo Congresso o Estatuto do Índio.
Para dar efetividade ao processo de extinção dos povos indígenas, a ditadura militar, através do ministro do Interior, general Rangel Reis, elaborou um projeto visando a “emancipação dos índios”, através do qual pretendia resolver a questão declarando os índios emancipados, e suas terras disponibilizadas aos latifundiários. Desta forma, ao invés de demarcar todas as terras indígenas até 1978, como previa o Estatuto do Índio (Lei 6.001, vigente até hoje), resolveria o problema declarando 80% dos índios como não índios, não tendo direito, portando, às suas terras, ou confinando-os a lotes do módulo rural.
Apesar do projeto ter sido aparentemente abandonado, por pressão dos povos indígenas e da sociedade brasileira, ele retornou em vários momentos, principalmente no período em que a Funai foi ocupada pelos coronéis,  na década de 1980. Nesse período também foi urdido o famigerado programa dos “critérios de indianidade” pelo coronel Hausen. Critérios racistas, de sanguinidade, mancha mongólica.
O maquiavélico projeto conseguiu unir povos indígenas e seus aliados na sociedade para um grande enfrentamento que resultou na desistência do projeto por parte do governo.
As políticas indigenistas da ditadura militar instalaram um forte aparato militar na Funai, a partir dos órgãos de segurança e informação – Conselho de Segurança Nacional e Serviço Nacional de Informação, visando o controle e repressão dos povos indígenas e seus aliados. Instalaram cadeias nos postos e presídios indígenas regionais e nacional, como o Krenak, em Minas Gerais. Foi criada a Guarda Rural Indígena (GRIN) e a Assessoria de Segurança e Informação (ASI). A maioria dos cargos, desde o general presidente da Funai, até o soldado ou cabo, chefe de posto, foram ocupados por militares, da ativa ou da reserva. Dessa forma impuseram um forte esquema de controle sobre os povos indígenas e seus territórios. Mario Juruna, no início da década de 1989, sugeriu que a Funai passasse a ser chamada de “Fundação Nacional dos coronéis”.  A Funai, quando criada em 1967, tinha 700 funcionários, chegando a ter mais de  7 mil poucos anos depois. Hoje não existe mais uma Funai militarizada, mas com fortes heranças desse sistema e totalmente esvaziada.
Os povos venceram o projeto da integração. A sábia e inquebrantável resistência desses povos resultou num quadro bem distinto do almejado por seus inimigos: ao invés do extermínio houve um crescimento surpreendente da população indígena, passando de menos de cem mil no início da ditadura militar em 1964, para quase um milhão, distribuídos em 305 povos e presentes em todas as regiões do Estado brasileiro.
Mais do que isso, na Constituição Federal de 1988, os povos conquistaram o reconhecimento da “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam...” (CF art. 231). São contra essas conquistas que se voltam os ataques violentos dos setores anti-indígenas na atual conjuntura.
Brasília, DF, 28 de março de 2014
Egon Heck
Conselho Indigenista Missionário – Cimi

Secretariado Nacional

quarta-feira, 19 de março de 2014

Indios Kaingang acampam em Brasilia


A lua linda ilumina os passos dos guerreiros ruma à Esplanada dos Ministérios. Quando o sol timidamente desponta  por detrás do poder, os Kaingang já estão construindo  seu espaço de reivindicação e enfrentamento para os próximos dias. Eles vem do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, onde ultimamente   foram proferidos os discursos mais racista e anti indígenas e os processos de regularização das terras/territórios indígenas estão totalmente paralisadas.
Eles chegaram de 21 terras e acampamentos indígenas. “Temos pressa. Chega de papo furado. Vamos ficar aqui acampados até que o Ministro da Justiça dar andamento as processos das terras, paralisados há mais de dois anos.Guerra é guerra se é só isso que entendem...” afirmou uma das lideranças.
História de luta e resistência
Os Kaingang  e Guarani do sul do país tem enfrentado situações terríveis de violência, invasão de seus territórios  sofrendo discriminação e atitude racista por parte do modelo político e econômico de ocupação da região. Chamados de caboclos ou bugres,  nunca foram aceitos como cidadãos desse país, muito menos enquanto povos diferenciados com seus direitos étnicos e culturais reconhecidos e respeitados. Seus territórios foram sendo invadidos e tomados pelas frentes de expansão agropecuária e as populações indígenas confinados em pequenas áreas.
Em 1978 a situação estava dramática. Todas as terras indígenas do sul do país estavam invadidas, algumas transformadas em áreas de preservação e outras destinadas aos latifundiários ou projetos de colonização.  A terra indígena Nonoai estava ocupada por mais de 10 mil não indígenas, todos incitados por políticos a ocuparem as terras dos índios que o governo os legalizaria para eles. Diante disso os Kaingang exclamavam “Ou morremos pelas invasões ou recuperaremos nossas terras. E partiram para a luta. Uma verdadeira guerra de expulsão dos invasores. Numa mesma noite queimaram as cinco escolas de vilas de colonos dentro da área.  Estrategicamente colocaram todos os invasores para fora sem apelo à força ou armas, a não ser as armas da cultura e a coragem guerreira.
“É nós mesmos que resolvemos. Agora  teremos que resolver novamente a recuperação e demarcação de nossas terras. Hoje existem dezenas de acampamentos Kaingang e Guarani, sem que o governo federal dê qualquer sinal de regularização dessas terras. “Não aceitaremos essas vergonhosas e enganosas “mesas de negociação”. Direito não se negocia! Exigem a imediata retomada da regularização –  identificação,  portaria declaratória, demarcação e homologação dos processos paralisados, nas mesas e gavetas do ministro, FUNAI ou presidente da república.
Índios e colonos na mesma luta
Uma realidade promissora neste acampamento é a presença de agricultores que estão unidos aos índios para exigir solução da questão da terra, devolvendo a terra aos índios, indenizando e reassentando os  pequenos agricultores.
Aliás, essa tem sido a bandeira do movimento indígena e de seus aliados, especialmente o Cimi, cobrando sempre uma ação efetiva do Estado brasileiro no sentido de reconhecer os direitos originários dos índios e os direitos dos pequenos agricultores  a terra para plantar e viver. Foi desse processo de Nonoai  que nasceu o  MST.
A agenda do acampamento vai sendo construída na medida em que forem se desenrolando as atividades junto aos diversos Ministérios, Congresso, iniciando com audiência solicitada com o Ministro da Justiça do qual exigem respostas imediatas, expressas em documento que será entregue a ele.
Homenagem à guerreira Ana Fortes Fendô
Há duas semanas, faleceu uma das baluartes  guerreira, com mais de cem anos de idade, lutadora pela terra, razão pela qual esteve várias fezes em Brasília. Os Kaingang deste acampamento fazem desse momento de luta sua homenagem a todos os lutadores que possibilitaram a resistência e luta até agora.

Egon Heck
Secretariado do Cimi

Brasilia, 17 de maio de 2014

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

A Verdade Sem Medo



A memoria e a verdade mais do que resultados, produtos, relatórios, são processos coletivos e individuais, de  lutas  por direitos históricos,  por reparação  e justiça.  Com essa percepção e dentro de um momento conjuntural   propícia a iniciativas nesta perspectiva, que foi criada, em agosto de 2013 a Comissão Indígena da Verdade e Justiça.

E tempo favorável à emergência de verdades ocultadas por décadas e séculos.  É a insurgente memória perigosa, que  aflora e  busca seu espaço nos processos de mudanças e transformações sociais, na construção de novas sociedades.

A Comissão Nacional da Verdade, criada por pressão da sociedade civil, em 2012, ensejou a criação de inúmeras comissões país afora, à semelhança do que ocorreu em outros países da América do Sul, como Argentina e Chile. Foi nesse bojo que se constituiu a Comissão Indígena da Verdade e Justiça, criada pelo movimento indígena e aliados. São ferramentas para dar vazão a urgente necessidade de passar a história colonialista a limpo e dar a voz e a vez às vítimas, aos oprimidos, em especial os que sempre foram preteridos e relegados a segundo plano e discriminados, como no caso dos povos indígenas.

A Comissão Indígena da Verdade e Justiça esteve reunida em Brasília para avaliar o andamento dos trabalhos e traçar rumos e definir   estratégias. Participaram lideranças indígenas, pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB, Coiab, Apoime, Atyguasu, Arpinsul e  entidades  aliadas, dentre as quais o Cimi, Armazém da Memória, Universidade Federal da Grande Dourados dentre outros.

Num rápido relance da caminhada foram levantados principais desafios e perspectivas. Todos  manifestaram seu desejo de contribuir para que esse instrumento de luta pelos direitos indígenas se consolide e desperte a consciência nacional quanto às violências e genocídio a que foram submetidas as populações indígenas, especialmente pela ditadura militar. Mais do que um bom relatório a Comissão Indígena alimenta a esperança de que se dê visibilidade a fatos marcantes que causaram a morte de aproximadamente 10 mil indígenas durante os 20 anos de ditadura militar. Em consequência de chacinas, transferências forçadas,  epidemias,  pacificações apressadas, torturas, assassinatos, milhares de indígenas, centenas de aldeias foram destruídas.

Um dos objetivos da Comissão Indígena da Verdade e Justiça é dar visibilidade a esses fatos, através de depoimentos e revelação de documentação histórica. Dessa forma também esperam  contribuir com o relatório da Comissão Nacional da Verdade, previsto para ser concluído até o final deste ano. Porém o mais importante é que a revelação desse processo de negação de direitos, violências e genocídio não se repita e perpetue em nosso país.

Otoniel  Kaiowá observou que é importante trazer os velhos pra falar porque eles conhecem toda história. Diz que devemos demonstrar que não existem fronteiras e essas pesquisas vão ajudar a fortalecer a dimensão territorial. Foi dado muita ênfase aos cuidados indispensáveis para a realização dos relatos e depoimentos nas aldeias, sendo isso fundamentalmente uma atividade dos próprios acadêmicos e professores indígenas. Com isso se estará respeitando o espaço, o tempo e a cultura de cada povo, a situação concreta de cada comunidade e a compreensão de cada depoente. Já existem atividades em curso, dentro desses princípios, conforme relatou o professor Neimar, da UFGD. Dia 21 foi realizado um passo importante com audiência-depoimentos de representantes de 5 aldeias/tekohá, em Dourados.

Outra dimensão importante do trabalho é que se chegue a fazer reparação coletiva aos povos indígenas, dentro das perspectivas que está trabalhando o Ministério Publico Federal. Uma das ações que está sendo movida é pelo MPF do Amazonas, com relação aos Tenharim.
Foram elencados quase duas dezenas de povos que tiveram inúmeras mortes diretamente cometidas por agentes do Estado brasileiro ou em decorrências de suas políticas desenvolvimentistas, para que esses fatos sejam levantados em depoimentos e documentos para serem revelados à opinião pública.
Também foi visto e discutida uma proposta de publicação em mais de uma dezena de tomos, relatando extensamente todo esse processo de violência e mortandade sofridas pelos povos indígenas em nosso país.

Com muita determinação e realismo, sem ilusões quanto as dificuldades a serem enfrentadas, os membros da Comissão Indígena da Verdade e Justiça estará se empenhando cada vez mais para que mais pessoas, aliados e voluntários da causa se empenhem na luta pela verdade, sem medo e justiça sem subterfúgios.

Egon Heck
Cimi-secretariado
Brasilia, 22 de fevereiro de 2014